Eu não podia acreditar no que estava vendo. A muralha não tinha mais portões, havia um buraco nela. Era impossível pensar em como o imperador conseguira fazer aquilo, a muralha era mais resistente que qualquer coisa existente no mundo.
Gingar olhou para mim como se interpretasse meus pensamentos, também estava desacreditado. Fiquei imaginando qual era a situação em Millandus, a praga adentrara o lado Sul da muralha.
Passamos por ela com atenção redobrada, pois de acordo com a carta que recebemos, a entrada estava sendo vigiada pelo império. Gingar e Unsan ficaram na minha frente, assegurando de que era seguro avançar.
Uma flecha repentinamente passou bem perto do meu rosto. Gingar me olhou assustado, provavelmente também vira a flecha. Senti algo quente escorrendo e percebi que a ponta da seta cortara minha orelha.
Ergui um escudo invisível à nossa frente no momento exato que várias flechas foram disparadas em nossa direção. Estavam escondidos na mata, impossíveis de serem vistos.
Gingar os caçava com os olhos, tentando encontrar sinal da posição deles. Vi uma mínima movimentação na mata, mas não passou disso, estavam muito bem posicionados.
Levantei minha outra mão e senti outro tipo de poder correr em minhas veias. Fogo surgiu no meio do ar e iniciou uma varrida na mata, onde havia visto a movimentação. Silêncio se fez, nenhum grito ou gemido de dor, eu havia errado.
Algo repuxou minha percepção para acima de mim, mas minha ação foi atrasada. Alguém me derrubou do cavalo prendendo meu rosto contra o chão. Senti uma lâmina fria contra minha nuca.
A pessoa segurou meus dois braços para que eu não me soltasse. Gingar e Unsan viraram na minha direção sacando suas espadas de uma mão, prontos para o combate.
— Larguem as espadas ou ela morre — era uma voz masculina, e não era estranha para mim. Senti a lâmina pressionada contra minha nuca, o homem não estava brincando.
Os dois caçadores Manak não baixaram as espadas, mesmo vendo que estávamos encurralados e o aperto em meus braços não afrouxava nem um pouco.
Me debati um pouco para ter noção da força do homem que me segurava, ele era muito forte para eu conseguir me libertar usando força bruta, que não era muita em mim.
— släpp vapnen — falei na língua antiga, pedindo para soltarem as armas —, não vale a pena lutar.
— Quem é você? — perguntou o homem, pressionando ainda mais a lâmina contra mim —, sua voz não é estranha.
— Interessa realmente quem eu seja?
— É claro que interessa!
Senti um leve afrouxo no aperto quando ele gritou. Travei minhas pernas ao redor da dele e torci para a direita, puxei minhas mãos e usei o cotovelo para o golpear e escapar, uma manobra que aprendi com Joel há muito tempo.
Me levantei rapidamente sacando minha adaga e a coloquei perto do pescoço dele. O homem ficou de cabeça baixa enquanto vi várias pessoas mirando seus arcos contra nós.
— Não somos inimigos — falei —, olha para mim — continuei, olhando para o homem.
— Se não são inimigos, porque continua com sua adaga apontada para mim? — perguntou ele.
De alguma maneira sua voz me causava nostalgia, como se já a tivesse escutado e não lembrava. Ergui o rosto dele usando a ponta da adaga e me assustei.
Seus olhos surpresos encararam os meus.
— Joel... — murmurei recuando alguns passos.
— Rose... — ele se levantou —, não acredito...
Larguei a adaga no chão e corri para abraçá-lo, e deixei as lágrimas tomarem conta do meu rosto. Eu não podia acreditar que ele estava vivo, e uma sensação de alívio tomou meu coração. Me afastei o suficiente para olhá-lo.
— Pensei que estivesse morto — falei segurando seus braços —, estou tão feliz em ver você! — olhei para Gingar e Unsan —, esse é Joel Triverl, meu primeiro mentor.
Os dois finalmente abaixaram as espadas e guardaram. Todos os que nos rodeavam fizeram o mesmo. Voltei a olhar para Joel, algumas marcas de idade começavam a se formar abaixo dos olhos, mas seu rosto não havia mudado tanto.
— Rose, por onde esteve?! O imperador tomou Millandus, saiu se gabando de ter matado a garota da profecia.
— Tenho muito a contar para você.
— Então aqueles outros homens eram amigos seus?
— Foram vocês que o interceptaram?
Joel ficou inquieto, talvez arrependido pelo ataque precipitado.
— Não sabíamos se eram soldados dos Pesadelos, então os atacamos. Encontramos o esconderijo deles esta manhã, estão em nossa custódia. Venham comigo, vou levar vocês até eles.
Assenti e o segui. Expliquei quem era para Gingar e Unsan, disse o quanto o rei tinha confiança em Joel para comandar suas tropas. Os dois pareceram entender e continuaram andando.
Subimos escadas na lateral da muralha e entramos em uma espécie de posto militar, provavelmente de onde Joel vigiava a movimentação do lado Norte da muralha.
Fora incrível o modo como eu o reconheci mesmo ele usando o traje de proteção que os Bellarim confeccionavam. Ao lembrar disso eu pensei no que poderia ter acontecido com eles.
Do lado de dentro havia uma tropa de soldados, mais sobreviventes do que militares, provavelmente os últimos soldados do rei. Gingar e Unsan foram guiados por uma moça para verem nossos espiões, enquanto eu segui Joel até uma mesa.
Ele se sentou e as pessoas ali se afastaram o bastante para não ouvirem nossa conversa. As janelas de vigia foram fechadas e as portas trancadas, cortando qualquer contato do ar de fora com o de dentro.
Joel tirou sua máscara e a jogou dentro de um recipiente com veneno de Pritar, usado para eliminar todas as partículas da praga. Ele me olhou confuso por eu não usar o traje, nem meus amigos, mas ficou em silêncio, serviu para mim uma caneca de café quente e se recostou na cadeira.
— É seguro que você esteja aqui sem proteção? — perguntou ele.
— É sim.
— Me conte tudo.
Tomei um gole de café e contei o que passei, como acabei com os Manak, tudo que aprendi junto a eles, a batalha em Vurian, minha captura e morte pela praga. Joel acreditou em tudo, exceto a parte do palácio do céu.
Expliquei com clareza a profecia e como eu me encaixava nela, disse a ele quem minha mãe era e a difícil conversa que tive com os Siefes para me ressuscitarem
Contei tudo até aquele momento. Joel pareceu convencido quando terminei, e então quem começou a contar alguma coisa foi ele.
Joel me contou como os pesadelos explodiram os portões da muralha, e com uma estratégia muito bem montada, dominou Millandus e Liceo. O rei naquele momento estava preso, e a rainha sendo tratada como serva.
Os duques e duquesas Azarir e Infeor estavam presos também. Ele não sabia qual era a situação dos Rosário, mas me contou que os Bellarim estavam sendo forçados a confeccionar trajes resistentes de batalha.
Quando perguntei sobre Amanda Joel não soube responder, Marcus de acordou com ele estava escondido dentro do reino e Edward sumira com seus pais.
A situação estava pior do que imaginava, o imperador dominara tudo, exceto Rubria, que travava uma batalha densa contra os soldados inimigos.
Mesmo tudo estando daquela maneira, não desisti de voltar à Millandus. Eu precisava resgatar todos, até mesmo os Azarir, ninguém merecia o que estava acontecendo.
Porém, a única coisa que me chamava atenção era a estratégia que os pesadelos usaram. Joel me contou que foi organizada, diferente do ataque surpresa, que fora apenas um teste das forças protetoras de Millandus.
Foram organizados, ordenados e colocados em campo de batalha estrategicamente. Como se soubessem onde as defesas se concentravam, dissera Joel.
Aquilo era muito estranho, mas meu foco estava em resgatar a todos. Pedi para Joel me explicar como os soldados lutavam, que padrão usaram na batalha e a velocidade de reposição.
Sabendo disso, eu poderia analisar bem e descobrir como adentrar o reino sem sermos descobertos, além disso, se soubéssemos quais eram as posições exatas dos guardas no castelo, resgatar as pessoas seria uma tarefa fácil, com um pouquinho de distração na medida certa.
Joel concordou em mandar homens se infiltrarem no reino para pegar os detalhes que precisávamos. E eu me pensaria em estratégias. Ressaltei a ele que desde que voltei dos mortos, minha mente parecia mais aberta, e permitia que eu visse diferentes situações e como elas acabariam.
Isso será um trunfo! Dissera ele. Tivemos uma longa conversa, apontando as principais aberturas nas defesas do rei e prováveis fraquezas. Onde posicionar nossa distração para o imperador e como resgatar nossos amigos.
Além do mais, eu e Joel conhecíamos o castelo como a palma de nossas mãos, temos conhecimento das passagens secretas e onde cada uma delas dava. Nossa maior dificuldade era conseguir que a rainha estivesse exatamente onde precisávamos.
Iríamos precisar de um mensageiro. Nosso plano fora cuidadosamente pensado. Cada pessoa tinha sua posição certa. Encarreguei Unsan de levar a mensagem, e Gingar seria sua proteção.
Tudo estava perfeito, exceto uma coisa. Como tirar todas as pessoas do reino e conseguir fugir com elas para a montanha corta-vento, que eu passei a chamar carinhosamente de palácio na montanha, afinal, tudo naquele lugar era feito da própria montanha.
Cavalos seriam alcançados facilmente, os Tigor eram rápidos, mas não podem carregar mais de uma pessoa em suas costas, precisávamos de algo mais rápido. Então eu pensei no dragão que me perseguiu durante a travessia para o palácio na montanha. Mas primeiro esperaria pelas informações que iríamos precisar.
Depois de organizar o plano com Joel, eu fui ver como Gingar e Unsan estavam. Já havia anoitecido e o posto militar era iluminado por candelabros de velas e lanternas a óleo.
Gingar estava do lado de fora do quarto onde o homem ferido estava, deduzi pela sua expressão que nosso caçador não estava nada bem. Dei um leve aceno de cabeça para ele e entrei devagar.
Do lado direito vi Unsan encostado na parede, de braços cruzados e olhos fixos no homem. O caçador jazia em cima de uma cama ampla, coberto com um lençol fino e branco.
Sua respiração estava fraca, eu podia ver pela dilatação de suas narinas. Levava cerca de três vezes o tempo que uma pessoa saudável demorava para respirar.
— Como ele está? — perguntei.
— Órgãos danificados, foi alvejado por flechas — respondeu Unsan —, só tem mais três dias de vida, foi a médica quem disse.
— Entendi...
Me aproximei dele devagar, e o vi abrir os olhos lentamente. Estavam vermelhos, provavelmente por conta de farpas retiradas recentemente.
— Por... Kristallrosa — sussurrou ele muito lentamente.
Olhei para Unsan.
— Saia do quarto.
Mesmo relutante ele saiu. Eu estava disposta a tentar algo que nunca fiz antes, me lembrando de uma das conversas que tive com minha mãe.
As palavras ainda estavam frescas em minha mente. Pode fazer o que quiser com os poderes que herdou de mim, você é ainda mais poderosa que eu.
Fechei a porta pelo lado de dentro e fui até a cama, segurei a mão dele e fechei os olhos, tentando sentir sua pulsação. Minha visão percorreu um caminho avermelhado e um pouco escuro até o coração do homem.
Batia muito devagar. Vi seus órgãos destruídos, seu pulmão se enchendo de ar lentamente e, adentrei sua mente. Ele estava em um sonho com sua família Manak, alegres vivendo em um mundo de paz
Comecei a imaginar que seus órgãos estavam se reconstruindo, um após o outro, e me apeguei à frase da minha mãe, usando-a como combustível para aquilo. De repente senti um formigamento em minha mão, uma espécie de corrente passando de mim para ele.
Fiquei tentada a abrir os olhos, mas eu sabia que se fizesse, acabaria perdendo o foco. Continuei pensando nos ferimentos cicatrizando, nos órgãos feridos voltando ao seu estado original e naquele sonho que vi na mente do homem.
Senti o suor escorrer pelo meu nariz e pingar na parte detrás da minha mão, mas continuei de olhos fechados, até que repentinamente o homem deu um suspiro como se algo que estivesse atrapalhando ele respirar fosse retirado subitamente.
Abri os olhos e cambaleei para trás, usando a parede para me escorar. O homem estava sentado olhando para mim, enquanto eu recuperava meu fôlego. Unsan entrou desesperadamente, talvez tenha ouvido o barulho de eu me encostando na parede para não cair.
Unsan olhou para o caçador sentado na cama, depois seguiu sua visão para mim, murmurando uma única frase antes de sair:
— Aquela que cura...
E saiu para chamar Gingar. Engoli em seco ainda ofegante e olhei para o homem que agora estava de pé. Ele caminhou até mim e se curvou, não tive tempo de impedir que ele fizesse aquilo.
— Abençoada pela luz seja você, Kristallrosa.
Olhei para minhas mãos, sem acreditar no que eu havia feito. Muitas pessoas poderiam ser salvas se eu soubesse dominar aquilo com mais controle. Lembrei do fogo de mais cedo, eu estava despertando poderes que antes não tinha, ou talvez sempre estiveram comigo e eu só não sabia.
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Os Ventos do Norte
FantasyEm um mundo assolado por uma praga, Rosemary cresceu sozinha, dentro de um reino selado pelo medo de serem contaminados. Decidida a ajudar o exército real na luta contra os rebeldes conhecidos por Pesadelos, Rose descobre que há uma maneira de acaba...