Capítulo 1

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       Abri meus olhos violentamente. Minha testa estava molhada, assim como meu corpo. Respirei ofegante acordando de mais um pesadelo daquele fatídico dia.
       Me levantei e joguei os cobertores de lado na cama. Caminhei até o banheiro e lavei meu rosto sem olhar para o espelho. Minha pele se esfriou por conta da água.
       Ergui meu rosto e me encarei. Os olhos escuros como carvão, da mesma cor dos meus cabelos e minha pele branca um pouco pálida foram refletidos no espelho. Notei algumas manchas abaixo dos olhos, provavelmente decorrentes de noites ruins de sono.
       Todas as noites eu tinha o mesmo pesadelo. O fogo, o sangue, os gritos e a morte dos meus pais. Sete anos se passaram, e eu não conseguia esquecer aquele dia.
       Voltei para meu quarto. O relógio em cima do criado mudo marcava seis horas, novamente eu acordara mais cedo do que o necessário. 
       Por mais que eu quisesse voltar para a cama, sabia que não conseguiria dormir. Abri meu armário de roupas e peguei algo comprido para me proteger do frio de Millandus.
       Tomei um banho rápido e me vesti. Como todas as manhãs, preparei algo para comer e esperei o sinal de que já era hora de sair.
       Por volta das dez da manhã, ouvi alguém bater na porta de minha casa, eu já sabia quem era. Edward Rosário, um de família nobre no reino.
       Não consegui sair sem levar uma das minhas adagas. Senti o peso da lâmina no cinto de couro que uso para as manter em minha cintura.
        Andar sem estar armada era como caminhar nua. Desde aquele dia eu não conseguira sair sem algo que pudesse ser usado para minha defesa.
        Destranquei a porta e a abri devagar. Os cabelos castanhos de Edward estavam cuidadosamente penteados, seus olhos cor âmbar me observaram. Um garoto bondoso e bonito.
        — Bom dia! Rose — cumprimentou animado.
        — Dia, pois de bom não tem nada — respondi. Eu não queria descontar nele, mas as palavras saíram quase que automaticamente, então, reformulei —, ótimo dia Ed.
        — Pesadelo de novo?
        — Nada fora do comum.
       Tranquei a porta e me aproximei dele, que já começara a andar. O sol ainda não tinha nascido por completo, embora a temperatura agradável.
        Algumas mulheres já abriam suas janelas, afim de permitir a entrada de ar em suas casas, nas qual começariam a limpar em breve enquanto cuidavam dos seus maridos até o horário dos mesmos saírem para o trabalho.
       Millandus sempre fora um reino muito bonito, mas viver aqui é ainda melhor. Os prédios eram quase sempre da mesma cor, brancos com detalhes em amarelo.
       Diferente das residências que variavam de cor, mas nunca saiam do amarelo, vermelho ou marrom. As casas diferentes pertenciam às diversas famílias nobres do reino.
        Rosário, Infeor, Azarir e Bellarim. Minha família, os Rigdor, só era composta por mim e mesmo que me considerem nobre, eu não aguentaria a viver como uma, ainda mais pelo meu sonho.
       Entrar na Guarda Real.
       Seguimos em completo silêncio por quase o caminho todo, até que Edward, querendo apaziguar meu mal humor disse calmamente:
       — Quer conversar sobre?
       — Não, obrigada. Vou melhorar logo, não se preocupe com isso — respondi com sinceridade.
        Edward me olhou como se o nome, mentirosa, estivesse escrito na minha testa.
       — Já estou melhorando, não é mentira — falei.
       — Certo.
       Se ele tinha acreditado, nunca saberei. Continuamos descendo rua abaixo, por mais que não fosse uma subida.
       Olhei para o céu pensativa. Desde que Joel me buscara naquela floresta, eu sentira que estava ganhando uma chance nova de viver, mesmo que às vezes eu prefira estar morta. 

A academia era o maior prédio do reino todo. Composta por cinquenta salas de ensino, sete arenas de treino, dois pátios e o lado de fora. Era feito de pedra e pintado de verde musgo. Fora construído para ensinar os jovens a dominarem diversas matérias.
        Mas meu interesse estava apenas no combate. Para chegar a entrar no processo de avaliação da guarda real, era obrigatório que eu completasse os ensinos, então não tinha outra escolha a não ser comparecer às aulas.
        No corredor principal encontrei outro dos meus amigos, perto de um grupo de crianças que tinham olhos assustados na direção dele. Marcus Infeor. Dei dois tapinhas em suas costas, chamando sua atenção para mim.
        Pele bronzeada, corpo musculoso e brutalidade de natureza, eram as características principais dos Infeor, treinados desde cedo para o combate, as vezes penso em como eles conseguiam aquele tom de pele, em um lugar que o sol não é tão quente.
       — Olá Marcus, assustando as criancinhas de novo?  — Apontei na direção das crianças. 
       — Estou contando da vez em que levantei uma rocha.
       — Tem certeza? Eles parecem ter escutado uma história de terror — olhei para elas e agachei um pouco —, se ele assustar vocês, contem para mim, certo?
       Elas assentiram lentamente e saíram correndo para suas salas.
       — Você fala como se pudesse me vencer em um duelo — Marcus se gabou. Ele sempre se gaba.
       — Ser grandão não é ser habilidoso — lancei uma piscadela de olho para ele, um sinal de desafio.
        Marcos gargalhou.
       — Um dia vamos lutar e ver quem ganha.
       — Pode se preparar para apanhar — dei risadas leves e caminhei na direção da minha sala.
        Alguns estavam sentados, outros de pé conversando, e tinha o garoto mais chato de todos, Samuel, da família Azarir. Arrogância praticamente emanava dele por onde passava.
        — Saiam da frente, seres inferiores! — Dizia ele com sua voz irritante.
        — O único inferior aqui é você, que não passa de um pedaço de merda — disparei enquanto caminhava em sua direção.
        — Ora, ora. A órfã.
        Parei a sua frente, encarando-o diretamente nos olhos.
        — Saia da frente, Samuel — não evitei o tom de ordem em minha voz.
        — É você quem vai me tirar? — Debochou ele.
       Arrogante, esnobe e arrogante.
       — Quer que eu tiro? — Respondi em tom de ameaça.
        Ele me olhou de cima a baixo e disse:
       — Tire, experimente me toc...
        Eu o interrompi com um soco bem dado em seu rosto. Samuel caiu com o canto da boca sujo de sangue meio grogue. Senti meu corpo formigar, como se uma corrente elétrica tivesse corrido pelas minhas veias. O que foi isso?
        Passei por ele e caminhei até minha carteira, onde Amanda, minha amiga, observava boquiaberta. Ouvi as risadas de Marcus no corredor.
        — Você vai se arrepender disso, Rosemary — disse Samuel enquanto se levantava meio zonzo.
        Lancei um olhar de desprezo a ele e o ignorei. O instrutor surgiu na porta, arrumou os óculos e observou Samuel, depois seguiu sua visão até mim.
        — Soco bem aplicado, senhorita Rosemary.
        Droga.
        Eu sabia exatamente o que aconteceria a seguir.
        — Vá até o diretor e me espere lá enquanto levo Samuel até a enfermaria.
       Revirei os olhos e andei até a porta, mas Amanda me seguiu, juntamente de Edward.
        — Ele mereceu — disse Amanda.
        — É claro que mereceu — concordou Edward —, mas Rose perdeu o direito de se defender quando o esmurrou.
        — Dane-se, não estou nem um pouco interessada em me defender de alguma coisa, ele teve o que mereceu, está feito, fim de papo — retruquei.
        Mas na verdade eu estava interessada sim. Seria minha quarta ordem para ver o diretor, apenas naquela semana.
        De alguma forma o instrutor já estava lá e me deu um aceno de cabeça quando cheguei. Suspirei e entrei na sala.
         O diretor estava sentado em sua cadeira, atrás da enorme mesa que tomava a sala, que por sinal, cheia de papéis.
        — Sente-se senhorita Rigdor — ele estendeu a mão na direção de uma cadeira na frente da mesa. Me sentei devagar —, recebi uma reclamação há pouco, de que você teria desferido um soco em Samuel Azarir, estou certo?
        — Está sim.
        — E qual foi o motivo para tal agressão? — Sua pergunta soou acusatória.
       Desgraçado, nojento, cínico.
       Eu o xinguei mentalmente com todos os xingamentos que me lembrava, mas respondi calma quanto uma tartaruga.
        — Ele me pediu para tirá-lo do caminho e eu obedeci.
        — Por que?
        — Samuel é um esnobe, e estava chamando os outros de inferiores — cruzei os braços —, mas se acha que só eu mereço punição, fique à vontade.
        — Não vou te punir. Eu só quero que isso não aconteça mais.
        — Certo... vou me controlar — menti. Eu daria quantos socos fosse preciso para arrancar aquele sorrisinho sarcástico do rosto dele.
        — Pode ir...

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