A versão criança de mim era assustadora, ainda mais sem Daruucad por perto. Seus olhos escuros estavam fixos em cada movimento meu, o que me fazia lembrar que acima de tudo, eu enfrentaria a mim mesma, e não seria uma tarefa fácil, não sabia como uma garotinha de dez anos pensaria, nem conseguia me lembrar em como venci aqueles soldados naquela noite.
Algo nela me fazia sentir enjôo, seus olhos emanavam uma dor que eu não conseguia explicar, uma dor de dentro da sua alma, plantada lá. A menina tinha a guarda de um soldado e a atenção de uma serpente, podia ser eu, mas havia alguma coisa diferente no modo como agia, era cuidadoso demais, algo que uma garotinha de dez anos nunca conseguiria, a menos que fosse treinada desde muito cedo para o combate.
Devagar eu a contornei, sua defesa não tinha furos, era impecável. Segurei a Cadaadis com mais força e avancei contra ela, seu bloqueio foi tão firme que fiquei atônita sem entender, era uma criança, não tinha como ser mais forte que eu. Recuei alguns passos e ataquei de novo e de novo, mas a garotinha demonstrava uma maestria em combate que nunca vi em minha vida.
A pequena eu me empurrou com tanta força que custei evitar uma queda, ela atacou e fui obrigada a esquivar, não queria correr o risco de sequer receber um golpe dela, um empurrão já demonstrou parte de sua força. Seus golpes eram rápidos e extremamente precisos, definitivamente aquilo não era eu, apenas tinha minha aparência, eram movimentos perfeitos demais até para mim.
Girei Cadaadis na mão e golpeei, sentindo a adaga se chocar contra a arma inimiga, mas não parei e continuei golpeando sem parar. Nossos golpes espalhavam faíscas para todos os lados, enquanto nossos ataques se chocavam contra a defesa, estávamos no mesmo nível de combate.
Não importava a rapidez, nem a força, muito menos a dança de pés, paramos sempre na defesa uma da outra, e aquilo já estava me cansando. Esquivei bem a tempo de ser atingida, parecia que a pequena eu estava copiando meus movimentos, o que resultava nos golpes sem sucesso de nós duas. O único som que era ouvido ali vinha das nossas lâminas se batendo.
Em algum momento eu troquei a Cadaadis de mão e fintei novamente, a garotinha não esperava essa troca de padrão, mas conseguiu escapar por um fio. Uma linha fina de sangue escorreu pela ponta do seu nariz, onde minha adaga havia cortado. Senti uma ardência no meu braço e percebi que havia um corte igual ao que fiz nela.
Ela me acertara.
Meu braço aos poucos começou a ficar dormente e entendi que o corte fora estratégico, com certeza minha veia fora atingida e agora havia uma hemorragia. Meus poderes não respondiam, como se tivessem sido bloqueados. Segurei minha adaga com o braço bom e testei a empunhadura, não era muito firme mas daria para o gasto.
Ela avançou de novo, mas eu não tinha mobilidade o suficiente para revidar, então apenas comecei a sequenciar esquivas e bloqueios, não sabia se meu braço em algum momento voltaria a funcionar direito, mas aquilo era minha única salvação. Estava mais rápida, a garotinha elevava suas forças cada vez mais.
De repente eu caí, a garotinha me derrubara com uma rasteira, e antes que eu pudesse sequer entender o que havia acontecido, ela já estava em cima de mim, socando meu rosto com brutalidade digna de um bárbaro. Meu cérebro chacoalhava a cada soco, e sentia o sangue és dos ferimentos, não conseguia me mover, tudo estava ficando dormente e pesado.
Senti suas mãos ao redor do meu pescoço, apertando com força. Seus olhos negros estavam vidrados em mim e sua expressão continha ódio, meu erro. Eu sempre fui uma criança raivosa, achava que todos tinham culpa de tudo que havia passado, até encontrar Amanda. Meu ar se esvaiu mais um pouco, e quanto mais sem ar, mais eu conseguia entender o que movia a garotinha.
Ódio e amargura.
Minha visão começou a escurecer nos cantos, a consciência estava me deixando e eu tinha que impedir isso. Larguei a Cadaadis e segurei os pulsos dela, tentando tirá-la de cima de mim, mas em vão, seu aperto era muito mais forte que eu estava naquele momento. Talvez devesse aceitar que vencer a mim mesma nunca seria possível.
Pisquei devagar e me vi em um parquinho com alguns brinquedos, eu reconhecia aquele espaço, era de Millandus. As crianças brincavam alegres, mas percebi que havia uma garotinha sozinha na caixa de areia, apenas fitando os grãos amarelados, seu padrão de roupas pretas deixava evidente que a menina era eu, dias depois da minha chegada ao reino.
Eu nunca notei o quanto era solitária, o quanto sentia falta dos meus pais até aquele momento, a dor e a saudade era como uma faca que cortava meu coração em várias partes. Não conseguia escapar da solidão, mesmo tendo alguém como Amanda ao meu lado, no final eu sabia que morreria só em algum momento do futuro.
Derramei algumas lágrimas, aquilo doía, mas só havia percebido o quanto doía ali, demorou muito tempo para eu sentir a dor da saudade e o medo de ficar solitária, mais do que já era.
— Você acaba aqui, menina da profecia, sozinha, como tudo começou, como sempre foi, sozinha — escutei a garotinha dizer.
O rosto de Amanda surgiu em minha mente, a garotinha estava errada, eu não estava sozinha, nunca estive, tenho amigos que sempre estiveram ao meu lado. Abri os olhos e empurrei os pulsos da menina para longe do meu pescoço lentamente, enquanto fitava suas íris escuras. Ela parecia assustada com a minha força repentina.
Eu tinha que deixar de lado todo o ódio e amargura para vencer, esquecer que foram ordens do imperador que mataram meus pais, lutar contra ele não para me vingar, mas para dar um fim a toda a desgraça que ele causou. Tirei a garotinha de cima de mim e me levantei, peguei a minha adaga e a segurei com força.
A menina apanhou sua arma e veio em minha direção. Rebati seu golpe com tanta força que sua lâmina partiu em duas, a garotinha parecia misteriosamente mais fraca. Ela recuou, mas não a deixei fugir, chutei a parte detrás da sua perna, derrubando-a, ergui a Cadaadis pronta para acabar com ela, mas hesitei.
Haviam lágrimas em seus olhos e de repente me lembrei do medo de morrer naquela noite, como corri, as decisões desesperadas. Ergui a Cadaadis mais um pouco, mas não conseguia terminar, meus braços travavam. Se eu não tivesse feito tantas decisões erradas, talvez eu fosse uma pessoa normal.
Respirei fundo, ergui mais a adaga e a cravei soltando um grito, sangue espirrou no meu rosto, mas a menina de repente desapareceu, ajeitei meu corpo e segui a fonte de luz, sentindo meus batimentos cardíacos no pescoço.
Entrei devagar em um corredor, estava escuro e fedia a pó, mas caminhei cautelosamente para mais fundo. Olhei para o lado e vi uma sombra pequena de cabeça baixa, por algum motivo meu corpo entrou em alerta e todos os pelos do meu braço se arrepiaram.
De repente ela começou a correr na minha direção, e quando se aproximou de mim o suficiente para me atacar, mudou de tamanho e me atingiu com muita força. Atravessei a parede e saí do outro lado, em outra sala circular e vazia. Uma linha de fogo se ascendeu ao redor dela, iluminando o ambiente.
Do buraco que saí um dragão enorme surgiu, era Daruucad, mas estava diferente, seus olhos eram negros e dele emanava uma aura escura semelhante a fumaça. Me coloquei de pé e estabeleci contato visual com ele, sentindo o chão tremeluzir a cada passo que o dragão dava.
Não era meu Daruucad, e eu sabia disso, mas nunca conseguiria lutar com ele, sua aparência me atrapalharia. O dragão soltou um rugido e veio na minha direção, usando sua cabeça para acertar a mim. Caí no chão após o golpe e o vi se transformar em fumaça, rodeando a sala como um tornado.
Com dificuldade me levantei e fitei a fumaça rodeando a sala, ele poderia vir de qualquer lugar, eu nunca saberia. Uma bola de fogo repentinamente foi disparada contra mim, mas consegui esquivar no último minuto. O dragão apareceu da minha esquerda, me atingindo novamente enquanto desaparecia em meio a névoa escura.
Minha cabeça doía, assim como o resto do meu corpo, se eu saísse daquele templo, provavelmente ficaria uma semana de cama. Pela terceira vez me pus de pé, mas agora haviam espelhos ao meu redor, vi o reflexo de mim, roupas pretas sujas de poeira, machucados no rosto e braços.
Eu estava ofegante, e sabia que o diadema estava brincando comigo, ele estava fazendo tudo aquilo para impedir que eu o capturasse e roubasse seu poder. Encarei meu reflexo, notando todas as mudanças que passei, o rosto nem parecia mais o mesmo.
Veja só você, toda ferida, nem parece mais uma dama, disse para mim mesma, sendo sincera, eu não parecia uma nobre duquesa, estava mais para selvagem Manak. Sentindo-me incomodada com o que via, eu soltei meu cabelo e balancei um pouco a cabeça.
Respirei fundo tentando me recompor, tinha alguma coisa que eu precisava fazer para dar um fim naquilo tudo, só não sabia o quê. Sentei no meio da sala e cruzei as pernas e fiquei encolhida, abraçando meus joelhos.
De repente notei algo estranho no meu reflexo, levantei e fui até o espelho mais perto, não havia brilho em meus olhos. Devagar eu toquei o vidro, sentindo a superfície gelada. Todos quebraram repentinamente e algo despertou em mim, um tique, ergui minha mão para atrás e agarrei o pescoço de quem quer que estivesse ali.
Me virei e vi outra versão de mim, adolescente e perturbamente afetada por um ataque à Millandus. Ela escapou de mim e todo o fogo e névoa escura voltaram a me rodear, finalmente entendi que todas as versões de mim eram traumas.
Ela se moveu de novo e senti onde apareceria. Me virei rapidamente e a agarrei com força para não escapar, apertei seu pescoço até escutar um "creck" e soltei logo em seguida, tudo aquilo estava me deixando irritada.
Busquei dentro de mim o formigamento do meu poder, e quando o encontrei, segurei com força e puxei com tudo que tinha, liberando toda a energia dele, fazendo a névoa se dissipar e o fogo apagar. Senti algo correr da minha consciência e o persegui de volta pelo corredor.
No fim do corredor eu vi uma almofada vermelha dentro de outra sala escura, dela vinha uma energia muito forte, como se todo o poder definitivo estivesse contido ali dentro. Lentamente caminhei na direção da almofada e enxerguei a armação de prata do diadema.
Uma das pedras estavam trincadas, e era de onde saía a energia que permitiu o diadema evitar que eu o capturasse. De repente percebi uma movimentação cansada atrás de mim e quando me virei vi um rapaz, era loiro e tinha olhos azuis.
— Quem é você? — perguntei mantendo a Cadaadis em punho.
— Aquele que vai entregar o poder do diadema, meu poder... — sua voz era suave, tão suave que me fez vacilar na defesa.
— Então foi você que fez tudo aquilo?! Porque?
— Você precisa saber enfrentar você mesma, as coisas depois daqui só vão piorar.
Baixei a Cadaadis e o encarei, ele parecia... sofrer.
— Minha mãe nunca disse que você tinha um corpo — respirei fundo e me recompus.
— Sou um guardião, da minha parte do poder, e ela me deu o nome de força.
— Força? Mas... porquê?
— Força para enfrentar tudo o que está por vir, sabe... o mundo costumava ser tão lindo e calmo, parecia um paraíso de verdade — havia saudade em sua voz, nostalgia —, mas a humanidade se corrompeu quando aquelas duas meninas morreram... grande fatalidade foi aquilo, as pessoas se encheram de ódio depois daquele dia, acabaram com o culpado e endeusaram as meninas.
— O... culpado?
— A maldade está neste mundo há muito tempo, criança. Foi um homem que as matou, queria roubar a casa dos pais delas, porém as crianças acordaram bem na hora... ele as estrangulou e roubou todos os órgãos que podia vender... — ele sentou no chão e eu o segui, ficando de frente para ela —, os pais não estavam em casa, tinham ido em um concerto musical... eu era quem deveria estar cuidando delas, mas as deixei dormindo e fui ver uma Fada'd Vento que meu amigo havia capturado... a morte delas foi minha culpa, eu devia proteger elas, então como redenção eu fui encarregado de proteger este poder...
— Redenção? Mas... você não foi o culpado pela morte delas.
— O mundo não funciona assim, se você não cumpre o que lhe é mandado a culpa é sua.
Fiquei em silêncio, não conseguia nem imaginar o peso que aquele rapaz devia ter sentido naquele momento, duas meninas mortas em suas costas, pagar por algo que não fez.
— Encontre os pais das meninas e vai encontrar os outros artefatos — disse ele se levantando.
— Espera! Se você transita no mundo há tanto tempo, deve saber a origem do imperador.
— Porque quer saber a origem dele?
— Para saber quais são os motivos que o fez fazer tantas coisas ruins.
— Imperador Victor Efraim, era o melhor amigo do seu rei, foi abandonado no meio da guerra dos santos e fez um acordo com seres de outro mundo, ganhou afinidade com a praga e passou a usá-la, mas se ele não entregar os artefatos para esses seres de outro mundo, eles levarão a alma dele, e se conseguir entregar os poderes definitivos, ganha riqueza e se vingará.
— Então... tudo isso é culpa do rei de Millandus...? — ele concordou com a cabeça —, o imperador... tomou Millandus para se vingar...
O rapaz segurou em minha mão e me levantou.
— Chegou minha hora, eu te entrego o poder da força — disse o rapaz.
Minhas mãos começaram a queimar enquanto o rapaz brilhava como o sol. Tentei me afastar, mas não funcionava, parecia que eu estava segurando fogo. O rapaz fechou os olhos e curvou a cabeça, emitindo um brilho ainda maior, até que tudo se apagou.
Quando abri os olhos, Daruucad estava ao meu lado, me observando de modo estranho, como se eu tivesse acabado de voltar da morte pela segunda vez. Com muita dificuldade eu me sentei e vi a porta do tempo subterrâneo cheia de pedras, ele havia desmoronado.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Os Ventos do Norte
FantasyEm um mundo assolado por uma praga, Rosemary cresceu sozinha, dentro de um reino selado pelo medo de serem contaminados. Decidida a ajudar o exército real na luta contra os rebeldes conhecidos por Pesadelos, Rose descobre que há uma maneira de acaba...