Capítulo 41

17 2 0
                                    


       — Não pode ser... — murmurou ela —, como? Como você está aqui?
       — Acredite... eu queria muito ter uma justificativa...
        Ela estava ainda mais linda que da última vez. Seu cabelo estava mais comprido, e seus olhos mantinham a cor azulada. A pele dela estava um pouco mais pálida que antes, o que me fez imaginar se o imperador também controlava o clima.
        Seus lábios estavam mais carnudos, mas sua aparência continuava angelical como sempre. Ela estava usando um vestido num tom pastel e poucas jóias. Procurei por seus dedos algum sinal de aliança, mas não encontrei.
        — Você está...
        — Molhada? — perguntei timidamente, eu sabia do que ela estava falando, era do sangue em minhas armas.
        — Suja de sangue... nunca pensei que poderia me reencontrar com você... muito menos assim.
        — Desculpe...
        — Quem está aí? — perguntou uma voz feminina.
       De repente uma moça de cabelos alaranjados apareceu detrás de uma parede, provavelmente um cômodo ou estoque, estava suja de terra, talvez esteve cuidando das flores.
        Era linda.
        Olhei para Amanda, era óbvio que ela havia encontrado alguém, foram dois anos sem mim, não ficaria sozinha. Imaginava isso, fora a primeira vez que algo que imaginei realmente acontecera.
        — Alícia, está é... Rosemary... — disse Amanda. A moça pareceu surpresa.
        — É ela? A messias do Norte? A lenda?
        Fiquei confusa, messias? Lenda? O que eu me tornei para este lado da muralha? No Norte eu sabia que os Manak me tratavam como uma figura santa, mas no Sul?
       — Amanda, está um pouco... frio, preciso de roupas secas... de um banho — falei baixinho.
       — Claro! Podemos sair pelas portas dos fundos — ela voltou o olhar para a moça —, Alícia, está dispensada por hoje, amanhã eu não sei se vou abrir, caso eu vá, mandarei um aviso.   
        A moça pareceu entender a necessidade e saiu rapidamente. Amanda trancou a porta da frente e saímos pela porta dos fundos. Andamos por alguns becos, evitando as ruas, poderiam estar sendo vigiada. Surpreendentemente Amanda ainda morava na minha antiga casa.   
        Entramos e ela fechou a porta, passando todas as trincas pelo lado de dentro. Tudo estava como a última vez que estive na casa, Amanda não mudou nada. Ela me entregou uma toalha e roupas antigas minhas.
        Agradeci e fui até o banheiro. Era estranho estar ali, era como se não fosse meu antigo lar. Enchi a banheira com água quente e entrei, sentindo os nervos do meu corpo relaxarem ao mesmo tempo.
         Observei a cicatriz em minha coxa, onde certa vez um caco de vidro havia atravessado ela. Amanda parecia estranha, talvez pela Alícia? Claro, era esperado que isso acontecesse, sou a "ex" dela.
        Depois do banho eu observei meu reflexo no espelho. Não tinha visto o quanto eu estava linda, meus olhos pareciam mais atraentes e minha boca estava um pouco mais definida. De fato eu parecia com minha mãe.
        Penteei meus cabelos negros e saí do banheiro, Amanda me esperava no sofá com uma xícara de chá quente, pelo cheiro deveria ser alguma erva adoçicada e medicinal, talvez para evitar um resfriado.
        Amanda pousou os olhos na adaga presa em minha cintura, parecia que ainda estava suja de sangue do modo que ela a olhava, mas eu havia limpado a lâmina de modo decente.
        Caminhei até o sofá e me sentei devagar, sentindo os olhos de Amanda sempre em mim. Ela encarou a tatuagem na palma da minha mão enquanto eu a esticava para pegar a xícara.
        — Você é quem diz que é? — ela me perguntou. Era isso, desconfiança, afinal, passaram a informação de que eu estava morta.
         — Sim, sou eu, Amanda.
         — Onde foi o nosso primeiro beijo?
        Como eu poderia esquecer aquele momento mágico? Havia sido um dia extremamente assustador quando enfrentei o Scors para garantir que ela ficasse viva.
        — Em um posto de vigia, no meio do deserto de Rubria — falei olhando para ela.
        — E o nosso segundo?
        — Em uma varanda no centro da cidade Rubrina, dois dias antes de partirmos de Rubria.
        — Isso qualquer um saberia se indagasse Marcus, quero que me diga uma coisa que só a verdadeira Rose saberia — ela ainda parecia desconfiada. Notei que sua mão esquerda segurava o cabo de uma adaga escondida no estofado da poltrona.
         — Seu ponto mais sensível é o bico do peito, descobri isso naquela noite em Vurian, depois de nos reencontrarmos após quase três semanas longe — olhei para sua mão —, eu te ensinei a ser sempre vigilante e estar preparada para um ataque, sei que está segurando uma faca escondida no estofado da poltrona.
        Ela corou e algumas lágrimas escorreram dos seus olhos. Amanda levou suas mãos a boca e baixou a cabeça chorando.
         De repente ela correu e me abraçou, deixando as xícaras de chá na mesinha ao lado. Seu cheiro de flores me trouxe nostalgia, e não consegui evitar o choro. Devolvi o abraço, apertando-a com força, como um bebê segura sua mãe.
         — Rose... eu senti tanta a sua falta — murmurou ela no meu ouvido.
         — Eu também... eu também...
        Ela se afastou o suficiente para me olhar, tocou meu rosto, afastou uma mecha de cabelo e colocou atrás da minha orelha para observar meu rosto. Seus olhos corriam por cada detalhe e depois Amanda me abraçou novamente.
        Ficamos ali abraçadas por quase vinte minutos até Amanda se afastar e sentar na poltrona secando as lágrimas. Em seguida tomou um gole do chá para limpar a garganta e perguntou.
        — Quero que me conte tudo! Onde esteve por dois anos, porque apareceu só agora.
       Contei tudo a ela, como contei para Joel, expliquei sobre a tatuagem e o motivo de estar ali. Amanda escutou atentamente, às vezes derramava algumas lágrimas, em outras parecia espantada.
        — Marcus está preso, ele lutou na batalha para tentar impedir o líder dos pesadelos de invadir o reino... quebraram seus dois braços.
        — Onde ele está?
        — No castelo, junto com os pais...
        — Preciso entrar lá.
        — É perigoso...
        — Eu sei, mas nossos amigos estão lá.
        Quase citei a traição de Edward que eu havia visto em uma visão, mas decidi que contaria depois.
        — Fico feliz que tenha realizado seu sonho com a floricultura — mudei de assunto —, aquela moça é bonita, parece ser gentil.
        — Ela é, Alícia me ajuda com tudo.
        — Isso é bom, ter alguém ao lado para apoiar em tudo.
        Amanda me olhou confusa, mas ao mesmo tempo achando engraçado, mas o que ela achava engraçado era um mistério.
        — O que você está pensando, Rose? Que Alícia e eu temos alguma coisa?
        — Porque não? Seria natural, fiquei desaparecida por dois anos.  
        Ela riu, nunca vi Amanda rir tanto. Foram tantas gargalhadas que suas bochechas ficaram rosadas.
        — Alícia é minha ajudante! Desde que você se foi eu não me relacionei com ninguém — disse ela, ainda recuperando o fôlego de tanto rir —, o amor que sinto por você vai além da morte, eu continuei amando você mesmo depois que soube que o imperador havia te matado, Rose, você é o único amor da minha vida, e eu poderia continuar amando você mesmo depois de mil anos, até o fim de minha existência. 
        Minhas bochechas esquentaram, eu não acreditava que mesmo depois de tanto tempo Amanda ainda me amava. Baixei a cabeça e chorei, era um alívio ouvir aquilo.
         Lembrei do que sofri, e tudo que eu mais queria naquele momento era ver o rosto dela, contemplar sua beleza. Minha maior vontade era beijar aqueles lábios e me perder nas sensações, mas eu tinha coisas a resolver.
         Limpei as lágrimas e olhei para ela, sua presença me traria a calma que preciso para pensar direito. Pedi um papel e uma tinteiro, em seguida tentei desenhar a planta do castelo.
        — Joel me contou que os Azarir, os Infeor e o rei estão nas masmorras, precisamos tirar eles de lá o quanto antes — falei apontando um quadrado que representava as masmorras.
        — Temos que organizar uma operação, não podemos simplesmente os tirar do castelo, para onde os levaremos?
        — Para o Norte, há um esconderijo na montanha corta-vento, eles ficarão lá.
         — Qual é seu plano? — ela se ajeitou na poltrona.
         — O norte será meu, sobrou apenas Vurian e Zufreid daquele lado. Tamparei a muralha e vou ensinar o povo a montar dragões, nossa maior força será pelo alto.
         — Mas e a praga?
         — Os esconderijos são seguros.
         — O que preciso fazer?
         — Me ajudar a dar uma olhada no castelo, preciso entrar lá.
         — Apenas santificadas podem entrar no castelo.
         — O que o imperador iria querer com as santificadas?
         — Talvez levantar uma religião em nome dele? Seria um bom plano para fazer o povo adorar a ele.
         — Droga...
         — Mas tem um jeito de você entrar lá.
         — Como? — Amanda abriu um sorriso e na mesma hora entendi o que ela quis dizer —, ah não, pode esquecer.
         — Você vai ter que se vestir como uma santificada, se passar por uma santificada se quiser entrar.
         — Não tem outro jeito?
         — Infelizmente não.
         — Só pode ser brincadeira...
         — É o único jeito, espera o que? Não dá para entrar naquele castelo destruindo tudo.
         — Amanda, eu não sei agir como uma santificada, o imperador notaria a diferença.
         — É só ser gentil, optar por palavras difíceis e manter uma voz suave.
         Não havia outra alternativa, eu sabia das passagens secretas, mas sem saber a posição dos soldados seria impossível permanecer viva lá dentro.
        — Amanhã eu vou dar uma volta nos arredores, assim posso marcar onde cada guarda vai estar — disse ela —, sabendo onde eles estarão, você não vai precisar falar com eles, apenas com o imperador.
         Assenti e discutimos o restante do plano. Eu entraria, marcaria todas as posições dos soldados, descobriria onde Gingar, Unsan e Joel estavam e então sairia, depois retornaria e tiraria todos de lá pela passagem que leva ao cemitério.
         Não contei para Amanda sobre o Daruucad, e queria deixar isso como um segredo. Só de pensar nele senti seu arranhão em minha consciência. Passei o resto da noite treinando com ela.
        Voz suave, posição de mãos, jeito certo de andar. Treinei por horas e horas, até conseguir camuflar o meu eu violento em uma máscara de santificada boazinha. Havia ainda um problema.
         Se o imperador visse meu rosto, se lembraria de mim, porém, Amanda me assegurou de que não aconteceria, pois as santificadas escondem os rostos em um capuz.
        Além disso, eu iria com um grupo delas, como todas as vezes. Então só precisava me atentar às horas, quando entravam, quanto tempo passavam dentro e quando saíam.
        Agradeci aos céus por eu não ser uma santificada, pois só o treinamento era extremamente irritante, a maneira de andar era tão difícil de se manter que treinei por mais tempo.
        Não aguentaria ser uma delas, a maneira de agir era tão estranha que enlouqueceria. A noite toda foi tão longa que quando consegui obter a essência de como as santificadas agiam, Amanda estava dormindo. 
         Quando consegui fazer tudo certo, o dia já estava raiando. Tomei outro banho para tentar expulsar a sensação do sangue inimigo em mim, e deitei ao lado de Amanda.
         Estar ali era tão reconfortante que eu não queria dormir. Seu cheiro, a respiração calma e tranquila, tudo nela me fazia querer abandonar a profecia e fugir com ela para outro lugar, longe de toda essa guerra.
        Me aproximei mais um pouco e encolhi meu corpo perto dela. Senti seu braço passar ao redor da minha cintura, aproximando-me mais dela. Sorri e fechei os olhos.
         Eu não estava pensando em mais nada, apenas queria aquele momento calmo ao lado de Amanda. Com ela não existia tristeza, eu estava em paz, e permaneceria assim.
         Acabar com o imperador era minha maior vontade, dar um fim em seu reinado e finalmente viver feliz com as pessoas importantes da minha vida.
          Um raio cortou o céu e me assustei, encolhi-me ainda mais, um ato involuntário. Eu não sabia porque havia feito aquilo e comecei a pensar no motivo.
         Foi quando percebi que Amanda para mim era o porto seguro da minha vida, a pessoa com quem eu sentiria paz mesmo no meio de uma guerra catastrófica.
        Olhei para ela de novo e depositei um selinho em seus lábios, eu nunca mais iria querer estar longe dela, e sabe que Amanda esteve bem esse tempo todo me causava um alívio tremendo.
         — Eu te amo... — sussurrei e fechei os olhos.
        O sono me atingiu logo depois.

Os Ventos do NorteOnde histórias criam vida. Descubra agora