Capítulo 45

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      Acordei com o vento açoitando meu rosto, era noite e tinhamos acabado de passar pela muralha. A imensidão branca se estendia além do horizonte, o Norte. Olhei para trás, todas as pessoas estavam usando máscaras de proteção.
       Fitei o céu, sentindo a dor em meu coração, aquele vazio. Minha garganta doía, talvez pelos gritos. Eu não conseguia entender como Joel fizera com que Daruucad persistisse em desobedecer minhas ordens.
       Você vai entender, talvez demore um pouco. Disse Daruucad em minha mente. Fechei os olhos e respirei fundo tentando controlar minhas lágrimas. No fundo eu sentia ódio, ódio por não poder fazer nada.
         Por que?... por que ele se entregou? Perguntei a Daruucad.
        Sabia que os soldados me derrubariam, estavam com arpões, ele se entregou para garantir que eu alçasse voo, tinha conhecimento que os poucos segundos que levaria para eu subir poderia custar a vida de todos. Respondeu ele. Obedeci o último pedido de um homem, não voltar em hipótese alguma.
        Fiquei em silêncio, se eu falasse alguma coisa, provavelmente choraria, e não queria ali, as lágrimas congelariam e incomodaria. A montanha corta-vento se aproximava cada vez mais, me preparei para sair de cima do dragão e me enfiar em um quarto escuro.
       Demos uma volta completa ao redor da montanha e pousamos na área plana. Alguns Manak ajudaram a tirar Marcus de cima de Daruucad e o levaram para dentro. Callias me olhava apreensivo, talvez por arriscar muita coisa para os tirar de Millandus.
        — Eu sinto... — começou Diana.
        — Por favor não diga nada — interrompi.
        — Mas...
       Fuzilei ela com os olhos, bufei e saí dali estendendo a palma da mão para a direita, fazendo Daruucad desaparecer. Amanda tentou me alcançar, mas desapareci montanha adentro.
       Passei direto por Uriah, sem dar tempo de ele dizer nada, apenas continuei andando. Todas as pessoas me olhavam de longe, como se soubessem o que acontecera, talvez as Mestra-Sacerdotisas tenham visto o que houve.
        Caminhei até meu quarto, entrei e fechei a porta de pedra pelo lado de dentro, joguei a adaga na cama e sentei. Eu nunca esqueceria o que vi, o modo como o imperador matou Joel com uma frieza sem igual.
       Cerrei os punhos e me levantei. Virei a cama para um lado, quebrei os móveis de madeira, soquei a parede até ver meu sangue nela, e gritei, gritei de ódio.
        Sentei no canto de quarto e comecei a chorar, não me importava com a dor em meus punhos, apenas chorei. Lembranças dos momentos bons ao lado de Joel tornaram-se dolorosos.
        Saber que nunca mais o veria, que nunca mais ouviria sua voz nem sentiria seu abraço, fazia meu coração partir em duas partes. Doía, mas acima de tudo, eu sentia que deveria fazer algo para me vingar, me vingaria por Joel.
        Olhei para a adaga caída no chão e soube exatamente como chamá-la. Cadaadis, um tormento, como aquela profecia estava sendo para mim, tormento. Me levantei e segurei a adaga, olhando meu reflexo na lâmina de prata.
        Prometi para mim mesma, que aquela linda lâmina prateada, teria o sangue do imperador sujando-a. Girei a Cadaadis nas minhas mãos e fintei o ar, uma, duas e até três vezes. Ela parecia tão leve em minhas mãos.
        Apertei o cabo até os nós dos dedos ficarem brancos. Aquele ódio queimava em meu corpo, como se fogo corresse pelas minhas veias. Amanda estava errada, não havia escapatória para a violência eminente.
        E eu estava disposta.
        Disposta a arriscar minha própria vida para obter a cabeça do imperador em minhas mãos, sentir seu sangue correr pelo meu punho. Joguei a adaga no ar e a peguei novamente.
        — Você vai pagar, imperador... vai pagar — murmurei no meio do quarto.
         Abri a porta e saí, voltando ao topo da montanha para pensar, eu precisava esvaziar minha mente. Suspirei segurando o parapeito, sentindo a pedra fria queimar minha palma. Ergui meu rosto e observei o horizonte, o plano que eu havia montado, passando tanto tempo planejando tudo nos mínimos detalhes, fora por água abaixo.
        Pensei tanto nele, tudo parecia dar certo na teoria, mas Joel pensara mais afundo, ele sabia que havia pontas soltas, mas decidiu não me dizer, preferiu se sacrificar. Como eu fora tão burra a ponto de não pensar em uma possível emboscada?
        Por minha falha, Joel agora estava morto, ele se sacrificou por meu erro, pela minha burrice. Eu estava tão focada em resgatar aquelas pessoas, que acabei não pensando em um possível contra-ataque. Baixei a cabeça, um erro custara a vida de uma das melhores pessoas que conheci.
        Ouvi alguém se aproximando devagar, eu reconheceria seus passos em qualquer lugar.
        — O que houve? — perguntou Uriah se aproximando.
        — Nada, estou bem — respondi com convicção, Uriah não precisava saber que eu havia perdido alguém importante para mim.
        — Mentir é feio, sabia?
       Seus olhos continuavam fixos em mim, suspirei e o encarei por alguns minutos.
        — Sabe, este mundo é muito cruel, uma hora você está rindo e adorando passar um tempo com aquela pessoa, e na outra... — respirei fundo e engoli o choro se acumulando em minha garganta —, ela morre, bem na sua frente e você não pode fazer nada porque, está em cima de um dragão.
       Olhei para ele e sorri, mesmo sentindo as lágrimas se ajuntando em meus olhos. Uriah me observou quieto, agarrou o parapeito e baixou a cabeça, ele queria dizer algo, eu sabia pelo modo de agir.
       — Antes de você aparecer, eu já sabia que minha mãe morreria, mas não tinha coragem de acabar com aquilo, de dar um fim no sofrimento dela, então, você apareceu e fez isso por mim — Uriah continuou de cabeça baixa —, no início eu fiquei triste, mas me alegrei, porque você tirou o sofrimento da minha mãe e ela pôde enfim descansar, pensamos sempre que a vida é algo bom e a morte algo ruim, mas as vezes a vida é tão cruel que morrer é a maior esperança em alguém, então, por mais que doa, estou feliz, pois ela está descansando.
        Fiquei surpresa com a tamanha maturidade dele, um garoto tão pequeno. Abracei ele e o ouvi suspirando, Uriah sentia a mesma coisa que eu, e se alguém entendesse minha dor, Uriah era essa pessoa. Me aproximei dele e toquei seu rosto, chamando sua atenção para mim.
        Lentamente me agachei para ficar do seu tamanho, seus olhos estavam marejados de lágrimas. Um garoto tão pequeno, que já provou como o mundo pode ser cruel.
       — Eu prometo que ficarei ao seu lado até eu ficar velhinha — sorri, mesmo derramando lágrimas —, eu vou te proteger, vou cuidar de você, nunca saberá o que é solidão.
       Uriah derramou uma lágrima e não resisti, abracei ele forte, de alguma maneira eu conseguia me ver nele. Nos afastamos e levantei devagar.
        — Vai comer — disse a ele —, entro daqui a pouco.
       Ele assentiu e correu para dentro. Olhei para o horizonte novamente, eu sabia exatamente o que deveria fazer, mas não tinha certeza se era seguro. Daruucad ficou inquieto, senti sua movimentação dentro do mundo paralelo.
       Subi o capuz do manto Manak e subi no parapeito, o vento estava forte e frio. Eu não conseguia ver o chão lá embaixo, a montanha corta-vento era tão alta que era impossível medir quantos metros seria de queda livre. Mesmo assim, não sentia medo.
       Fechei os olhos e me joguei, sentindo meu corpo livre pela queda. Coloquei meus braços juntos no corpo e senti a velocidade aumentando. Eu só conseguia pensar em tudo que já tinha acontecido, quantas pessoas haviam perdido suas vidas, quantas famílias destruídas.
       Meu coração batia forte, enquanto me lembrava do olhar do imperador quando terminou de matar Joel, aquele ódio em seu rosto, talvez até crueldade. Abri os olhos, vendo apenas névoa contra meu rosto, eu conseguia ouvir o vento conforme caía.
       O chão estava se aproximando rápido, qualquer pessoa em meu lugar entraria em pânico, mas eu estava calma. Daruucad se movia desesperado dentro da tatuagem e quando me aproximei bem perto do solo estendi minha palma para liberar meu dragão.
        Suas asas brancas me recolheram no ar e com uma volta circular  Daruucad me colocou em suas costas, estendeu as asas e planou bem perto do chão, um segundo a mais e eu teria morrido. Você está louca?! Reclamou ele em minha mente.
       Não respondi, queria apenas sentir a adrenalina correndo pelas minhas veias, eu havia pulado do topo da montanha corta-vento, a maior do Norte. Estava tremendo, finalmente entendendo o perigo que havia corrido, se Daruucad não fosse tão veloz, eu estaria morta, de novo.
        Embora eu soubesse o que tinha feito, não sentia nada além de adrenalina, como se o perigo me fizesse sentir viva. Então percebi que não temia mais a morte, não tinha medo dela, passei a correr riscos que qualquer pessoa mais inteligente nunca teria corrido.
       Fora por isso que Joel se entregou, ele viu o perigo no plano de tirar aquelas pessoas das masmorras, montou uma estratégia em cima da estratégia e agiu primeiro que eu. Aos poucos fiquei ofegante, como fui capaz de ficar tão cega pelos meus objetivos a ponto de não pensar em como ficar viva?
       Era isso que a profecia avisara?
       Que eu sofreria tanto que viver era um tormento?
        Eu sabia exatamente onde conseguir respostas, e estava indo direto para lá. Daruucad fez uma meia volta e seguiu rumo Leste, seguindo os meus comandos, o poder não me importava mais, eu apenas queria respostas.
       Uma guerra estava se aproximando, e eu precisava encontrar uma maneira de fazer aquilo do jeito certo. Quem quer que fosse o enviado do imperador para governar o Norte, ele teria que morrer, mesmo que fosse apenas um peão.
        O imperador tinha que conhecer o gosto amargo da derrota e, eu o faria sentir, queria ver como agiria quando visse tudo que conseguiu, escorrer pelos seus dedos. Daruucad subiu, girou e caiu entrando no buraco dentro do chão.
        Descemos pelo templo escondido e vi a borda do portal do inferno passar bem perto de mim. Depois de uma queda livre, Daruucad abriu as asas e planou lentamente antes de pousar. Desci de suas costas e olhei ao redor.
        O ambiente estava completamente destruído, haviam escombros por todos os lados, como se uma batalha enorme tivesse ocorrido a muito tempo naquele lugar. Caminhei devagar mais adentro e vi restos mortais espalhados no chão, talvez das pessoas que usaram aquele buraco como sentença de morte.
       O ar era pesado e rarefeito, dificultando a respiração, como se várias outras almas respirassem o mesmo ar. O lugar era tão silencioso que até meus passos me assustavam. Agarrei uma tocha velha e Daruucad a acendeu.
       Havia um batente de porta de madeira a minha frente, com algumas escrituras antigas. Vença você mesmo antes de tentar vencer o inimigo. Dizia a frase, mas eu não sabia o que significava. Olhei para Daruucad e assenti, caminhando para dentro do templo.
        Passei pela entrada e saímos em um salão enorme com chão xadrez. Haviam escadas para uma galeria superior, como se aquele templo fosse algum local de reuniões. Repentinamente senti um puxão de poder, e reconheci a pressão, era semelhantemente a dos Siefes, que indicava que eles em algum momento viveram ali.
       Cheguei até a metade do salão e parei quando senti uma brisa suave passando por mim, me arrepiei e saquei a Cadaadis. Daruucad ficou alerta. Senti uma carícia suave em minha bochecha e sabia que algo estava acontecendo, só não sabia o quê.
         Me pegue agora, Rose, quero ver. Disse o diadema em minha mente. Um vulto cresceu perto da escada, do tamanho de uma criança. Me afastei assustada quando ele se transformou em uma menininha de dez anos, tinha cabelos escuros e olhos da mesma cor, que pareciam olhar para o interior da minha alma.
        Daruucad desapareceu de repente, como se fosse retirado dali a força, minha conexão mental com ele havia sido cortada, e esse fato me assustava. Girei a Cadaadis em minha mão e apertei o cabo até os nós dos meus dedos ficarem brancos.
       Era eu, a garotinha em minha frente era uma versão mais nova de mim. Contornei ela pela direita, a pequena Rose fez o mesmo, havia uma brutalidade em seus olhos, um tom violento de preto, uma necessidade de sobreviver e em suas mãos havia uma pedra pontuda, a mesma que usei para matar aqueles homens certa vez.
      Respirei fundo e parei de contorna-la, me coloquei de frente para ela e a encarei. Eu vou te pegar. Falei para o diadema. Me aguarde.
       

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