Capítulo 33

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       Ninguém me procurou depois do que fiz Zuriel sentir, todos se fecharam em uma sala e me deixaram de fora enquanto discutiam alguma coisa. Me senti uma garotinha de dez anos novamente, que não podia ouvir a conversa dos seres celestiais.
        Era estranho saber que os deuses que chamamos na terra, eram os Siefes, e que uma deusa de verdade, era apenas minha mãe, com parcelas dos poderes deles. Ou uma parcela da parcela, afinal, boa parte havia sido guardada nos três artefatos.
         Sem ter o que fazer e morrendo de tédio, decidi sair do Palácio do Céu e explorar as redondezas. Mesmo com a certeza de que não havia nada para ver.
        O pátio era todo branco, e o chão feito de ladrilhos. Passei pelos portões e segui o caminho sentindo que ia para baixo. Se tem um caminho aqui fora, com certeza existe alguma coisa além. Pensei.
        E realmente estava certa. Fiquei boba com o que presenciei. Tinha uma cidade, com ruas feitas totalmente de ouro. O céu era colorido assim como os olhos do Siefe e havia pessoas andando pelas ruas, alegres como nunca fui capaz de ver.
        As casas eram de um material que não reconheci, pareciam resistentes e eram muito bonitas. Pensei se ali era algum tipo de paraíso, mas lembrei que minha mãe dissera que não permitiria que seu marido fosse separado dela.
         Talvez os moradores não pudessem chegar perto do reino, tinham a permissão de ficarem apenas na cidade. Eu ficaria satisfeita de ficar ali, parecia aconchegante e alegre.
         Queria falar com alguém ali, mas não sabia se era seguro, então apenas continuei andando. Ninguém sequer olhava para os outros, mantinham suas visões à frente.
          Olhei para o céu colorido e me perdi em sua beleza. De repente acabei esbarrando em alguém e despenquei no chão de ouro.
         — Desculpe-me, senhorita — me assustei com aquela voz.
         Ergui o rosto e encarei os olhos claríssimos de Maalavan, ele estava ali. Usava um manto branco parecido com o dos caçadores, mas não havia os ferimentos que tinham da última vez que o vi.
         — Rose? — perguntou se lembrando de mim —, o que faz aqui? É a Cidade nas Nuvens, apenas mortos honrados vem para cá.
          Sorri com a familiaridade da voz de Maalavan.
         — Venha, o que essas pessoas mais querem é uma alma recém chegada para se apossarem dos seu corpo — disse baixinho estendendo a mão para mim.
        Me levantei e caminhei com ele, até chegarmos em uma casinha. Entrei primeiro e Maalavan veio atrás de mim. Todos os móveis tinham as mesmas cores, branco ou cinza.
         Sentei no sofá mais perto com ele na minha frente. Maalavan avaliou meu rosto, talvez estivesse procurando uma razão que explicasse porque eu estava ali.
        — Tive problemas... o imperador me capturou, me infectou com a praga e morri — falei rapidamente, afastando a lembrança da dor que senti.
        — Mas você vai voltar, não é? Tem que voltar, seu lugar não é aqui.
        — Bom... minha mãe está discutindo isso com os Siefes...
        — Sua... mãe?
        — É... Riviera é minha mãe.
        — Nossa... aqui ela é uma deusa, então você é mesmo a garota da profecia, já aceitou isso?
        — Estou tentando, não é fácil, mas vou caminhando para a aceitação.
        — Quando voltar, o que fará?
        — Isso se os Siefes concordarem em me ressuscitar, dois aceitaram da última vez que houve a conversa.
        — Eles provavelmente estão fazendo um levantamento das possíveis consequências.
        — É bem provável, se não valer a pena o risco provavelmente não voltarei a terra, e o povo vai ter que prosseguir sem mim.
         — Não vejo isso como uma possibilidade, não há cumprimento da profecia sem a peça chave, é a mesma coisa que lutar em uma guerra desarmado.
        — Me explique, como é viver aqui? — perguntei mudando de assunto.
        — Tem muita paz, quando fui trazido para cá, Riviera me disse que o Palácio do Fogo Vivo é muito violento, as almas brigam o tempo todo, é o lugar ideal para as pessoas ruins da terra.
         — Você já visitou algum palácio?
         — Visitei Maritim, a Cidade Marítima, que fica perto do Palácio das Águas Salgadas. Têm paz, mas as almas não são completamente puras, existe maldade em seus corações, mas pouca. O lar ideal para aqueles que foram obrigados a cometer maldades, como os soldados.
         Assimilei o que estava ouvindo. Cada Siefe tinha sua própria área de atuação, que explicava suas cores diferentes. Zuriel tem o controle de uma espécie de Cidade-Punitiva, onde as pessoas eram punidas e brigavam entre si.
         Samael tinha a Maritim, um meio termo, com descanso, mas pouca paz. E Amael controlava a plena e pura paz, pensei no que tinha feito minha mãe permitir que Maalavan ficasse na Cidade nas Nuvens.
         Maalavan era obrigado a cometer assassinatos, então seu lugar seria em Maritim. Mas ali estava ele, vivendo em Moln, a Cidade nas Nuvens. Embora não estivesse sujo de sangue ou agonizando, eu não conseguia esquecer aquela visão.
        O desespero, o sangue, sua respiração ofegante, tudo aquilo se enraizara em minha memória e nunca mais sairia. Se apenas uma batalha fora traumatizante, não queria imaginar uma verdadeira guerra.
        Eu tinha que impedir, se voltasse à terra era o que deveria fazer. Não teria tempo para curtir alguma coisa, o tempo seria curto para tantas coisas a fazer. 
        Depois da conversa com Maalavan, retornei até o palácio, Samael estava encostado em uma pilastra e sua expressão não era boa — talvez Zuriel tivesse negado novamente — imaginei.
         Percebi o quanto ele era diferente de Amael, seu rosto era mais fino e com traços que davam mais leveza as suas expressões faciais, seus olhos também eram coloridos, mas com tons azulados sendo predominantes.
          Todos os três emanavam a mesma onipotência, que me dava nervosismo, a plenitude deles era impecável até no modo que ficavam parados, eu não conseguia nem pensar na força de seus poderes.
         Talvez fossem capazes de partir a terra em várias partes com um aceno de mãos. De acordo com as lendas, minha mãe também era capaz. Provavelmente meus poderes seriam na mesma medida, pensei comigo.
          Lembrei daquele escudo que criei sem nem saber como, ele havia aguentado diversos ataques dos dragões, que não conseguiram fazer nada além de arranhar aquela parede invisível.
         — O que houve? — perguntei à Samael — Zuriel não concordou em me ressuscitar?
         — Amael e Riviera estão debatendo com ele, seu medo é que haja desconcerto no curso do universo.
         — Curso do universo?
        Ele desenhou um círculo com água no ar. 
         — Diferente da linha do destino — Samael passou uma linha fina por entre o círculo —, o curso do universo é constante e organizado, tudo segue de acordo com o que a linha do destino determina — o círculo se rompeu de repente —, se algo saí desse curso, ele se rompe e causa problemas no universo, como a passagem de criaturas desagradáveis para este lado.
         — Criaturas de onde vocês vieram?
         — O lugar de onde viemos é fora da consciência humana, é o próprio espaço-tempo envolto em escuridão demoníaca, diversas das especies de criaturas que tinham lá, vieram para este mundo quando criamos a Trino Etéreo. Como os Halab, Pritar, Scors. O farejador de medo é o pior deles. 
         — Os que atacam a noite.
         — Exato, Zuriei tem medo que mais delas achem uma brecha e entrem, como a que vive no mar.
         — Mar?
         — Um Fräs. É o maior perigo dos mares, uma mistura do que vocês chamam de polvo e cobra.
         — Nunca ouvi falar.
         — Talvez nenhum humano tenha sobrevivido para contar a história, afinal, aquela coisa tem vinte vezes o tamanho do continente.
       Aquilo me causou arrepios, não era possível que algo tão grande existisse no mar. Se tinha vinte vezes o tamanho do continente, a criatura poderia engolir ele todo em questão de segundos.
       Fräs era o nome da coisa, torci para que não encontrasse um quando fosse atrás do anel, pelo visto não havia um jeito de matar uma criatura tão grande, e fiquei pensando no motivo de os monstros marinhos sempre serem maiores que os terrestres.
        — Acha que Zuriel vai concordar? — perguntei.
        — Não sei, ele é imprevisível, não dá para saber, meu irmão dificilmente demonstra indícios do que irá responder. 
        — Talvez eu converse com ele.
        — Boa sorte, meu irmão tem um gênio difícil.
        — Não existe uma pessoa difícil que resista a uma boa conversa.
         Samael concordou com a cabeça e caminhou na direção da porta, abriu e desapareceu em um raio dourado. Eu caminhei na direção do andar de cima, onde havia uma sacada com visão para o imenso jardim.
         Zuriel estava observando o horizonte, em silêncio, de braços cruzados e com expressão severa, como sempre. Caminhei até ele e fiquei ao seu lado, segurei o parapeito e continuei quieta.
         — O que você quer, criaturinha pequena? — perguntou Zuriel —, consigo ler em sua expressão.
         — Podemos conversar? — falei calmamente.
         Ele ficou em silêncio e tomei como uma confirmação.
         — Sei que pode haver consequências em relação ao meu retorno a terra, mas haveria muitas consequências piores se eu não retornar. Não vim aqui para lhe convencer a concordar, mas acha que vale a pena colocar em risco um mundo todo, para evitar que criaturas entrem deste lado do universo?
         — Acredite criaturinha, de onde vim, existe coisas que nenhum ser humano sequer imagina, se um desses seres adentrasse o lado errado, pode ter certeza que o mundo de fato estaria em perigo.
         — Qual seria a solução?
         — Talvez... um corpo temporário, que pudesse ser retirado do mundo quando chegasse a hora.
         — Tudo bem então, faça uma ressurreição temporária, assim não há risco de seres de outro mundo adentrarem.
         — Mas... você abriria mão das pessoas que ama, para proteger o universo?
         — Abrir mão de uma vida ao lado deles, para protegê-los, também é um ato de amor.
        — Como?
        — Amar uma pessoa, não significa que você tem que estar com ela o tempo todo, algumas decisões pode ser por amor, pois quando amamos, queremos o bem estar dela, mesmo que ela sofra um pouco pelas consequências.
         Zuriel ficou pensativo, olhou para meu rosto e depois voltou a observar o jardim. Por instinto, segurei sua mão, fazendo-o olhar para mim. 
         — Sei que seu palácio é cercado por sofrimento e ódio, mas você não precisa agir do mesmo modo sempre, pode ser mais gentil se quiser.
         — Como...?
         — Não saberia dizer nem se quisesse, espero um dia poder visitar você.
         Ele me encarou, como se estivesse diante de minha mãe, talvez tivesse visto ela em mim, afinal, na terra sou considerado como uma reencarnação dela. Soltei a mão dele, sentindo um beliscão leve do seu poder.
          Fiquei confusa com o que senti, mas o Zuriel desapareceu antes que eu pudesse pensar no que tinha acontecido. Esperei com esperança que ele me ouvisse, afinal, eu seria convocado novamente para mais uma reunião com os Siefes, afim de discutirmos uma última vez o que seria feito.
         Me encostei no parapeito novamente e pensei no tempo que estava ali, imaginando quantos dias haviam se passado na terra. Lembrei do rosto assustado de Amanda e senti medo do que pudesse ter acontecido depois.
         

Eu estava sentada na minha cadeira, esperando Zuriel e Samael chegarem, os dois haviam partido pouco tempo antes, possivelmente brigados. Minha mãe fitava as próprias mãos, alheia aos pensamentos, imaginando o fim daquela reunião.
         A presença dos dois irmãos se fez presente com o mesmo estrondo de antes, e em poucos segundos eles adentraram a sala, ambos vestidos com suas cores habituais, Samael de azul, Zuriel de vermelho.
         Eles caminharam até suas respectivas cadeiras e sentaram. Samael cruzou as mãos em cima da mesa e seu irmão continuou parado, observando os outros integrantes.
         — Retomando o assunto de antes... — disse minha mãe com voz de cansada.
         — Não vai haver discussão, eu aceito contribuir com a ressurreição da sua filha — interrompeu Zuriel.
         Olhei para ele, surpresa pelas palavras, não imaginava que desse certo. Zuriel se levantou, olhou para os irmãos e deu um leve aceno de cabeça.
         — Vamos fazer logo isso — disse ele.
         Amael e Samael se levantaram e caminharam. Eu os segui ao lado de minha mãe até a fonte no jardim. Eles deram as mãos e esperaram. Entrei na fonte e os olhei.
         Papai estava chorando, tivemos pouco tempo para conversar. Ele sussurrou um "eu te amo" que me fez querer o abraçar, minha mãe se aproximou e tocou meu rosto, com os olhos cheios de lágrimas.
         — Sentirei tanto a sua falta, eu te amo muito, mamãe te ama, demais, nunca se esqueça de mim — disse ela.
         — Nunca — minha voz estava embargada.
         Ela me abraçou, o abraço mais reconfortante que ninguém jamais conseguiria imitar. Sequei algumas lágrimas em meu rosto e acenei com a cabeça para os Siefes.
         Eles recitaram uma magia na língua antiga e a fonte começou a brilhar. Perdi visibilidade por conta do brilho e então tudo se apagou.
       

Devagar abri os olhos, minhas roupas estavam molhadas e muito frias, percebi de repente que estava debaixo d'água. Nadei desesperadamente para a superfície e fui até a costa.
        Deitei na areia gélida e puxei a maior quantidade de ar possível. O céu estava azulado com tons de cinza e o único som que eu conseguia ouvir era da quebra das ondas.
         Comecei a chorar de repente, aquilo tudo parecera um sonho, mas eu sabia que não era. Lembrar do rosto da minha mãe e não a ter por perto era doloroso, mas eu tinha coisas a fazer antes de partir.
          Coisas que precisavam ser cumpridas.

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