Capítulo 19

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       O som dos portões da muralha encheu os nossos ouvidos. Olhei para os lados e vi os muros enormes desaparecendo no horizonte. Amanda estava ao meu lado, mesmo com a discordância dos outros, eu havia conseguido a permissão para que ela me acompanhasse.
        Os portões começaram a subir e o som continuou. De repente ouvi o rei falar para todos:
         — Máscaras.
       Subi a máscara de Vinsert presa ao manto térmico que estávamos usando. Os Bellarim fizeram um filtro dentro das máscaras, com outro tipo de tecido.
       O sol do outro lado da muralha acertou meus olhos, levantei meu braço para não ficar cega. O vento frio nos acertou com força, era ainda mais gelado que Millandus.
       Passamos pelos portões, que logo foram fechados. A frente eu só conseguia ver neve e gelo, era como se fosse um deserto frio. Montanhas altas de neve se estendiam em diversas direções.
        O manto tinha um capuz, com finas linhas que se prendiam ao couro de combate, permitindo melhor proteção. A rouba que vestia por baixo me incomodava, era muito justa e não dava liberdade de movimento.
        Aquele couro era preso juntamente ao manto, tornando-se uma roupa só. Amanda também parecia incomodada com o aperto e, toda hora se mexia atrás de mim.
        Estávamos no mesmo cavalo, enquanto os outros iam com suas esposas, com exceção do rei, que tinha deixado a rainha em Millandus para ela resolver o que precisasse.
        Apertei os pulsos do manto e senti meu corpo aquecer mais um pouco. Começava aos poucos a entender como a roupa funcionava, era como se precisasse de vácuo para aquecer o corpo.
        De acordo com o rei, estávamos no meio do caminho para Zufreid, e eu não via a hora de chegarmos. O frio ali era cruel, não conseguia nem imaginar como as pessoas viviam naquele lugar.
        Amanda me apertou mais e senti sua cabeça encostando nas minhas costas, provavelmente estava cansada. Estivemos viajando por três dias, dois para chegar na muralha e aquele.
        Fiquei me perguntando se havia criaturas daquele lado da muralha, semelhante a Rubria ou Liceo. Todos continuavam em silêncio, e o único som vinham dos ventos fortes.
        Olhei para trás e vi o aço escuro da muralha se afastando, e por algum motivo me senti estranha, como se meu coração temesse alguma coisa. Então me lembrei o motivo.
        Estávamos praticamente em território inimigo. Kyvar ficava daquele lado, mesmo que fosse bem longe, mas e se inimigos nos atacassem? E se a viagem até Zufreid fosse apenas uma emboscada?
        Meu coração acelerou.
        Eu estava tendo outra crise, como a que tive meses atrás em minha casa. O medo, os tremores, a respiração ofegante.
         Joel tocou no meu ombro de repente, me tirando da crise imediatamente, fiquei aliviada. Ele acenou com a cabeça para mim, seu rosto estava pela metade, pois a máscara cobria do nariz para baixo, e o manto, da testa para cima, deixando só os olhos visíveis.
        — Está tudo bem? — Ele me perguntou. Sua voz estava abafada pela máscara, mas entendi com facilidade o que ele dissera.
        Assenti e respondi:
        — Sim, estou bem. Ela está dormindo? — Movi a cabeça lentamente para trás, indicando Amanda.
        — Está.
        Concordei e foquei afrente.
        — Estamos quase chegando, se olhar para trás poderá ver que a muralha já desapareceu no horizonte — avisou Joel.
        Ele apontou para frente e vi uma silhueta enorme começar a surgir entre a névoa azulada da neve. Os portões estavam há poucos metros de nós e me senti aliviada.
        Não aguentaria ficar naquele campo aberto por mais um minuto sequer. Me sentia como se estivesse sendo observada o tempo todo.
        Passamos pelos portões e seguimos dois guardas até o castelo. Outros dois nos seguiram por trás, formando uma escolta.
        Paramos em frente a uma porta grande feita de madeira, o castelo era duas vezes maior que o de Millandus e, estava com as luzes ligadas, pois a noite chegava devagar.
        Desci com cuidado do cavalo, pedindo para Joel me ajudar com Amanda. Ele a colocou em meus ombros e segurei com força. Um homem de barba média nos esperava.
       — Arthur Fuat, de Millandus! Seja bem-vindo à Zufreid — ele disse com animação.
       — Rei Farwell Garlapar, é uma honra estar aqui — pela primeira vez vi o rei de Millandus se reverenciar.
        Cada duque fez o mesmo diante de Farwell, mas eu sentia que ali os costumes eram diferentes. Então, quando chegou minha vez, eu fiz algo diferente dos outros.
        — Vossa graça — dei uma leve curvada de cabeça.
         O rei, surpreso, respondeu meu cumprimento com outro leve aceno de cabeça e disse:
        — E você deve ser a duquesa Rosemary Rigdor.
        — Sou sim — ele me observou de cima a baixo, como se estivesse matando uma saudade, mas então eu o interrompi —, desculpe o incomodo, mas poderia me levar até um quarto? Preciso colocá-la na cama — mostrei Amanda com cuidado.
        — Claro, sigam-me.
        O rei subiu poucos degraus e desapareceu porta adentro, eu o segui até a metade do salão principal. O chão era tão polido que refletia o teto, havia um lustre grande, escadas que dobravam para lados opostos e duas entradas em cada lado.
         Perto da escada haviam duas pessoas, uma mulher e um jovem. Imaginei que fossem a esposa e o filho do rei.
        — Ron, guie a duquesa Rosemary para seu quarto por favor, ela precisa colocar essa moça na cama — disse o rei ao rapaz.
        — Sim, pai — ele olhou para mim —, por aqui — e seguiu degraus acima.
        Eu o segui, me esforçando para não derrubar Amanda. Ele dobrou a esquerda e entramos em um corredor comprido.
         — Faz tempo que não vejo ela — disse Ron, de repente.
        Seus cabelos eram lisos e escuros. Usava roupas azuis com botões pretos e detalhes amarelos. Sua expressão era gentil, mas no fundo parecia se perder nos pensamentos e, seu olhar era penetrante.
         Então era com ele que Micael queria que Amanda se casasse. Não me surpreendi, Ron era bonito, e com certeza as meninas do reino caíam a seus pés apenas para serem notadas.
        — Conheço você — respondi gentilmente —, Amanda me contou sobre você.
        — Entendo... você é o que dela? — Ele me deu uma olhada breve enquanto andava, mas logo voltou a fitar o corredor.
        Pensei no que responder, não podia mentir.
         — Sou... — Comecei dizendo, mas ele interrompeu.
         — Namorada?
         De repente, parei e o encarei. Sua expressão continuou gentil, ele me abriu um sorriso e disse:
        — Já pode tirar a máscara, aqui dentro é seguro.
        — Desde quando você sabe?
        — Desde a última vez que conversei com ela. Fomos nós que encontramos a garota que ela gostava.
        — E como se sente em relação a isso?
        — Como eu deveria me sentir?
        — Não sei, me diga você.
        — Bom, acho que é normal, assim como eu gosto de garotas, Amanda pode gostar também.
         Abaixei a cabeça, mas quando fui responder, Ron já começara a andar novamente e, fui obrigada a me apressar para acompanhá-lo.
        Ele parou de frente para um quarto com o número vinte e dois marcado na porta. Mais de vinte quartos? Qual é a necessidade de tudo isso? Pensei comigo mesma.
        Ron abriu a porta e entrei, colocando Amanda devagar na cama. Eu a ajeitei e joguei um cobertor por cima do seu corpo. Três dias acordada a esgotaram demais.
         — Obrigada — agradeci. Ron colocou a chave na minha mão.
         Abaixei a máscara e inspirei profundamente.
         — O banheiro fica nesta porta — indicou ele —, roupas foram compradas de acordou com as medidas do seu corpo, a água é quente.
          Me lembrei de ter enviado medidas do meu corpo ao rei, Amanda também.
         — Tome um banho, a reunião foi marcada para amanhã, hoje vocês poderão descansar. O jantar será servido em duas horas — Ron encarou o relógio no seu pulso —, correção, duas horas e meia.
         — Obrigada, de verdade.
        Ron deu um aceno leve de cabeça e saiu do quarto fechando a porta. Olhei ao redor e fiquei impressionada com o luxo do quarto. Havia uma escrivaninha com um espelho grande, uma cômoda de madeira escura e puxadores dourados, que não duvidei nada de que fossem feitos de ouro.
         A cama era vermelha com entalhes dourados, um armário marrom, e duas estantes com diversos livros. O papel de parede seguia o tom vermelho, e o carpete era preto. Vi o brasão dos Garlapar em um quadro.
        Parecia ser um dragão cuspindo fogo, mas fiquei em dúvida se fosse uma águia envolta de sangue.
        Tirei com muita dificuldade, a roupa feita pelos Bellarim. Entrei no banheiro e vi mármore branco por todo lado, uau, pensei.
         Abri uma válvula e imediatamente a banheira encheu. Quando entrei, senti meu corpo vibrar, eu não tinha noção do quanto estava cansada até entrar na banheira.
        Me lavei sem pressa, e a vontade era de não sair dali em momento algum. Permiti me demorar no banho, estava muito agradável para ser rápida.
        Terminei e saí do banheiro. Na cômoda havia uma variedade grande de roupas. Eu peguei um vestido de pele tingida de azul escuro, era quente, macio e confortável. Olhei o relógio e ainda faltavam quarenta minutos.
         Penteei meu cabelo e usei uma maquiagem básica apenas para realçar meus olhos. Afinal, não precisava me empenhar tanto para um jantar simples, o papo seria diferente nas festividades do Amanhecer D'Ann.
         Desci quando chegou a hora, uma serva me esperava no pé da escada. Eu a segui até a sala de jantar, ela me guiou até minha cadeira e me sentei.
         A mesa era enorme, cabia todos nós e ainda assim tinham cadeiras livres. Havia uma variedade de assados, massas, pães, bebidas e sucos, além de alguns caldos e sopas.
        — Vocês vão se surpreender com a sobremesa que mandei preparar — disse o rei Farwell.
         Me servi de cordeiro assado, grãos e caldo picante. O gosto era maravilhoso, eu nunca havia provado uma comida tão boa. Experimentei um pouco de cada coisa e mal conseguia escolher.
         A sobremesa foi servida. Era ambrósia com calda de caramelo.
        Depois do jantar, eu corri de volta para o quarto, pensando que Amanda já poderia estar acordada, mas quando entrei, a vi espalhada na cama.
        Sorri e me troquei para deitar ao lado dela. Ouvi a respiração dela entrecortada e me lembrei de que ela ainda estava usando a máscara.
         Com muito cuidado e dificuldade eu consegui tirar a máscara e o capuz. Até pensei em trocá-la, mas isso a acordaria, o que ela mais precisava naquele momento era descansar bastante.
     

Acordei de madrugada com murmúrios no corredor, reconheci a voz do rei Farwell e uma mulher. Curiosa, me levantei da cama e abri a porta, os dois estavam indo em direção as escadas.
        Assim que desapareceram, eu os segui, e encontrei eles conversando no pé da escada. Me escondi e fiquei ouvindo.
         — Tem certeza? — Disse a mulher.
         — Tenho, ela me saudou como se fosse daqui a senhora tem que a ver.
        — Você acreditou que Hanna era a Kristallrosa, e no fim não era nada.
        — Esta é diferente, eu senti, ela tem alguma coisa.
        Estavam falando de mim, mas não conseguia entender o que exatamente estavam dizendo.
        — Ficarei de olho nela, mas se não for, você será obrigado a entregar o trono à casa Ruzi.
        — Certo.
        Ron apareceu, vindo da cozinha.
        — Você não pode colocar isso em jogo, pai.
        — Ron, meu filho, diga a Mestra-Sacerdotisa o que sentiu quando conversou com Rosemary.
        — Realmente senti algo diferente, foi como se um ser superior estivesse na minha frente falando comigo.
        — Vocês só podem estar exagerando, uma garota logo de Millandus? A profecia é bem clara, a menina viria deste lado da muralha.
        — A Profecia não diz de onde a menina viria — disse o rei —, se ela for a menina da profecia, poderá nos salvara praga e dos pesadelos.
         Perdi a paciência e decidi voltar, pois mais uma vez me colocavam como algum tipo de santo. Eu sabia quem eu era, e era Rosemary Rigdor, apenas isso e mais nada.
         Mas quando virei de costas e ia caminhar de volta ao meu quarto, Ron disse uma coisa que me paralisou.
          — Os pesadelos fizeram ataques à Vurian... eles querem dominar Vurian também, se Rosemary for a garota da profecia, tomara que aja rapidamente, ou vamos sucumbir antes que a profecia se cumpra.
         — Para a profecia se cumprir, ela teria que se infiltrar em Kyvar, você sabe exatamente para quê — respondeu a Mestra-Sacerdotisa.
        Houve silêncio, e então, barulho de passos na escada. Andei apressadamente até meu quarto e fechei a porta, digerindo tudo que havia escutado.

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