🌈A Cura

167 31 9
                                    

    🌈Música do capítulo: Two Ghosts - Harry Styles

    Dê tempo ao tempo e ele se recupera.
    Dois corpos compartilhavam um quarto de hospital, as macas insistindo em judiar da coluna vertebral das vítimas de um lunático. Eles recebiam soro na veia, a picada nem foi sentida já que estavam inconscientes quando chegaram ao pronto-socorro. Os leitos eram frios, as cobertas finas, os jovens gelados e inválidos.
    A garota estava prestes a acordar e se deparar com um lugar casado com branco. O garoto, por uma infelicidade, dormiria por mais três horas em extremo desconforto.
    Pregas invisíveis prendiam as pálpebras da jovem, e ainda sim ela se esforçou a enxergar. Numa poltrona cujos braços mostravam um rasgo de 13 centímetros, jazia um terceiro jovem de traços orientais que levava um band-aid grosseiro no osso do nariz. Ela lutou para se lembrar quem ele era: um parente, um amigo, um namorado? E tudo o que conseguiu foi uma terrível dor de cabeça, tanto que teve de se virar no colchão fino para não gemer em agonia. Foi aí que se viu cercada de garotos semelhantes. Desconhecidos que, pela aparência delicada, não a causam um pânico generalizado.
    Os olhos dela percorreram o próprio rádio, parando na incisão e continuando, seguindo todo o tubo até uma bolsa de plástico quase vazia pendurada num suporte metálico. Gotas caíam ordenadamente daquele líquido dentro do saco transparente. O soro corria dentro de si. A garota, impressionada com aquilo, contou a frequência da queda das gotas com máxima concentração, como se fosse remunerada com essa fútil tarefa.
    — S/n?
    Uma cabeça atendeu ao nome falado com zelo. "Eu sou a S/n". O chamado vinha daquele com cabelo azul, feito uma chama que esquenta sem intenção de queimar. Ele bateu na coxa acordando o outro que babava encostado num travesseiro para pescoço e apontou para garota. Atordoado por ter sido desperto, houve uma demora até que este se levantasse calmamente e se aproximasse dela.
    A reação de S/n foi totalmente compreensível. Ela puxou os joelhos contra o peito e se encolheu. Embora eles notoriamente estivessem preocupados com ela, ainda eram estranhos aos olhos fundos que carregava.
    — Minha gatinha, você está se sentindo bem? — O babento se apoiou nas barras da maca, esticando o braço e buscando as bochechas dela. — Você está no hospital. Se lembra do que aconteceu?
    S/n não só não se lembrava de como tinha ido parar em uma sala com ar viciado, como também não se recordava de ter estado acompanhada alguma vez na vida por três garotos orientais magérrimos. Era tudo novo para ela, talvez remotamente familiar, mas não o suficiente para que deixasse que qualquer dedos a tocassem.
    Sentindo a relutância da jovem, o de cabelos azuis impediu que seu amigo continuasse com a proximidade.
    — Vá chamar a enfermeira — ordenou sem intenção grosseira e o amigo saiu cabisbaixo do quarto.
    O rosto dele, antes rígido, a encarava silenciosamente e de repente retorceu. O azul levou a mão à boca e o tom de sua pele ganhou um rubor. S/n assistiu apática o garoto e suas lágrimas rolarem. Não significava que ela não tinha coração, apenas que não se comovia com a emoção alheia. "Quem era ele?", ela se perguntava.
    — Por que está chorando? — ela soltou bem rouca, buscando parecer se importar com o sofrimento repentino dele.
    — Oh, princesa. Me entristece ainda mais saber que você não tem noção da importância que tem pra mim.
    "Pra mim, quem?", ela desejava saber, porém ninguém em sã consciência fingiria soluços tão altos se não a conhecesse de fato.
    — Jagiya! Está acordada! — Ela se virou com o susto, os braços cruzados prendendo os joelhos, e encontrou um rosto bem machucado perto do dela. — Como você está? Está tonta? Quer algo? Água? — S/n assentiu desconfiada e bastou ele encarar o azulado para que este se recompusesse e buscasse um copo d'água no bebedouro próximo, trazendo de volta pouco depois.
    Enquanto bebia, o gelado molhando e rejuvenescendo a garganta, os olhos femininos focavam naqueles dois. Eram simplesmente lindos, concluiu. Contudo não estavam em seus estados normais. Estavam abalados por causa dela? Notou também que falavam coreano, o que fez a sua cabeça latejar mais uma vez. Como ela podia entender o que diziam? Seus pensamentos eram processados em português, então como diabos ela podia entender hangul?
    Um furdúncio surgiu no corredor capturando a atenção deles. Uma mulher gritou algo, depois um velho xingou em inglês — S/n estava gostando de aos poucos descobrir que era inteligente o bastante a ponto de ser trilíngue. — Passos apressados, pelo menos quatro, faziam um barulho na direção deles. Na porta, uma mão tatuada segurou com força a moldura, freando seu dono.
    — Eu não acredito... não acredito... não acredito — o tatuado repetia pra si ao passo que entrava emocionado no quarto.
    — S... n... S/n, pequenina — dizia ofegante outro que vinha mais atrás. S/n agora estava começando a se preocupar. Desde quando ela tinha tantos amigos estrangeiros? Ou melhor, como foi que a equipe hospitalar permitiu a entrada de tantos visitantes de uma só vez? — A quanto tempo ela está consciente?
    — Acabou de acordar — respondeu o cheio de hematomas.
    — Deem espaço para a enfermeira passar, pessoal — pediu o sexto coreano que chegara por último.
    Certo... o que estava acontecendo?
    Seguindo o pedido, uma enfermeira se esgueirou entre os meninos. Ela carregava um sorriso invejável no rosto, dentes refletores de luz de tão brancos, e segurava uma bolsa cheia de soro.
    — Olá, tudo bem, S/n? Sou a enfermeira Rachel e vou trocar o seu soro — informou tranquilamente já agindo. — Daqui a pouco o doutor Spencer irá vir te checar, okay? Antes, como está a garganta?
    A dor surgiu com a menção da parte mais prejudicada do corpo da jovem. As mãos dela envolveram e apertaram a área na tentativa de tirar a ardência e sensação de estreitamento. Ela se deu conta de que não conseguiria pronunciar mais palavras do que as poucas que malmente havia dito.
    — Moça, acho que ela não consegue falar. Um antibiótico não seria adequado pra ela? — O que aparentava ter a maior moral dentre os outros, também falava em inglês e acabou por irritar a enfermeira com o palpite.
    — Não se trata de uma infecção, senhor Kim. S/n sofreu uma lesão interna na traqueia. Portanto o único medicamento imaginável que o médico receitaria seria um analgésico para aliviar a dor. — Virou-se para S/n, o sorriso inabalável. — Fique tranquila, você está a salvo aqui conosco. Em breve o doutor irá conversar contigo. Com licença — e se retirou.
    A pose acuada mudara. S/n não sabia bem, mas se sentia bem com todos aqueles olhos sobre ela, e eram muitos, de diversos formatos puxados. Não houve silêncio constrangedor com a saída da profissional, houve um estopim de emoções. Risos, choros, respirações. S/n não conseguiu evitar de adquirir todas elas. Estava aliviada, mesmo não sabendo o porquê deveria estar.
    — Você nos deixou tão preocupados. Não faça mais isso, ouviu bem?! — Entre lágrimas, S/n encarava um tal de Jung Hoseok, como expunha o adesivo de identificação de visitante na camiseta larga dele. Hoseok se abraçava em crise e isso a fez chorar ainda mais.
    — Ei, garotinha, como se sente? — Kim Namjoon, um nome muito musical por sinal, guiou o queixo dela pra ele, que tinha um sorriso tremido. Um calor elétrico foi transmitido pelo toque, um que fizera ela o enxergar de novo. As íris brilharam. Estava começando a se lembrar.
    O toque foi trocado por um maior, um tronco musculoso buscando o acinturado dela de forma desesperada. Este chorava contido no pé do ouvido de S/n, que sentia também os dedos dele nas suas costas nuas na bata de hospital. Ali era tão aconchegante. O colo dele era o lugar que ela pertencia.
    — Senti tanto medo de te perder... Nunca pensei que passaríamos por isso. Eu... S/n... — Vendo-o daquele jeito, a intuição dela fez com que abraçasse de volta o adesivado Jeon Jungkook.
    O próximo, Kim Seokjin, segurou a mão dela entre as dele. Elas eram grandes e macias, perfeitas para fazerem carinho. Ele tentou dizer algo, mas acabou só balbuciando. Os dedões faziam movimentos circulares no dorso da mãozinha da única dama do ambiente.
    Esses garotos estavam muito emotivos. O que eles eram dela? Por que é que seus corações palpitavam com mais ênfase quando seus olhares se cruzavam?
    Ela recebeu um beijo simbólico de Kim Taehyung, o de cabelo engraçado. Os lábios dele pareciam penas de ganso fazendo cócegas na testa dela. S/n teve impressão de que ele queria mais um beijo, e os olhos dele indicavam a boca dela como segundo alvo, porém ele se conteve.
    E como se nunca acabasse — não que ela estivesse odiando aquela atenção toda, longe disso — o menorzinho foi até ela e abriu um sorriso encantador.
    — Seu rosto afinou e você está tão magrinha... — Park Jimin a observa atento. A expressão dele não permitia descobrir o estado deplorável em que ela estava. — Pequenina, prometa não me assustar assim novamente. Eu não suportaria passar por isso de novo. Não mesmo.
    — Pro... meto.
    A satisfação deles quando escutaram a voz rouca da sua amada é palpável. Verdade seja dita, S/n sentiu a intensidade do amor que eles tinham por ela e, como se fosse possível, o processo da paixão reiniciou. Primeiro foi a aparência que agradou S/n. Tinham príncipes encantados bem diante do seu nariz. Além disso, era inegável o quão cada parte deles era semelhante ao divino. Certas características como covinhas, pintinhas e mandíbulas anguladas foram feitas para atraí-la, aliás, feitas para atrair qualquer garota, e S/n não escapava. Estava fascinada. Ela não conseguia parar de encarar aqueles rostos, a vontade de possuí-los e expor em um quadro na própria casa. Se orgulharia de declará-los dela. Entretanto, novamente, lacunas em sua memória impediam que S/n soubesse do status de seu relacionamento com eles.
    — Boa noite, rapazes. Boa noite, senhorita S/n — cumprimentou uma voz masculina serena. Mais uma cabeça se apertou naquele quarto hospitalar. — Sou o doutor Spencer, responsável por cuidar de você. Como está se sentindo? Tudo certinho? Alguma tontura ou dor de cabeça? Sente fome?
    A garota apontou para a própria garganta com dificuldade e o doutor colocou as luvas antes de avaliar as lesões. Ele levantou cuidadosamente a cabeça dela e girou de um lado para o outro.
    — Hmm... É. Vire pro outro lado, querida. Isso. Sim... Bom, pelo que vejo, já está bem melhor. Ontem as manchas estavam vermelhas por serem recentes e agora estão escuras. O processo de cicatrização já começou, mas você ainda deve estar com dor, certo? Vou receitar um analgésico para a garganta. Agora, tem mais alguma coisa que ache errado?
    S/n apontou para a cabeça e relanceou sorrateiramente sobre os coreanos que estavam em pé aflitos. O doutor, esperto com tantos anos de experiência, percebeu uma insegurança pairando sobre ela.
    — Os garotos? Você não se lembra muito bem quem eles são, não é?
    Ao aquiescer, o doutor temeu ter que cuidar de mais seis pacientes. Eles entraram em negação, porém, antes que as coisas piorassem, Spencer veio com o diagnóstico: "Perda de memória temporária após stress pós-traumático. É mais comum do que se pensa. Eu mesmo já tratei uns doze assim".
    — Eles estão, me corrijam se estiver enganado, dentre as pessoas mais importantes da sua vida, S/n — o doutor sorriu com os olhos pros meninos, as marcas de expressão se exibindo orgulhosas. S/n confiaria de olhos vendados naquele senhorzinho de jaleco surrado. — Suas lembranças vão voltar rapidinho, não se preocupe não. Tanto que te darei alta assim que voltar a ter uma corzinha melhor. A pressão está boa. Sua palidez é seu organismo combatendo a fraqueza — disse ele fazendo S/n se recordar dos próprios avós, mais sábios que gurus de certificados. — Certo, certo... E Min Yoongi, algum sinal de despertar?
    — Não, senhor — respondeu Hoseok tristonho.
    S/n se arrumou na maca com a ajuda de Jungkook e Jin que estavam mais perto. O tal Min Yoongi estava do seu lado, parado e apagado que nem uma pedra. Esse outro coreano estava com um suporte azul-marinho no ombro e descansava no seu leito. A operação havia sido bem sucedida. A bala atravessou direto. O problema seria se tivessem que tirá-la de algum curso de artéria interrompido, mas, por ironia do destino ou não, o ombro dele ainda funcionaria, não tão bem quanto antes, mas funcionaria.
    Spencer levantou sua corcunda e leu os dados do monitor de Yoongi. A garota, acreditando que ele fosse tão importante para ela como os outros, cruzou os dedos esperando que tudo estivesse bem. Uma nova corrente de ar surgiu com os suspiros quando o humor do médico se mostrou positivo.
    — Isso é ótimo! Que recuperação impressionante! O amigo de vocês é forte! Ele deve acordar em breve e, se continuar assim, em menos de uma semana vai receber alta. — Todos comemoram as boas novas. — Só que eu sinto lhes informar que o horário de visita de vocês extrapolou já bons vinte e cinco minutos. É hora de dizerem adeus, rapazes.
    A despedida é acompanhada de relutância, mas aconteceu. Um por um eles pediram por um abraço. S/n sentiu um calor da mesma essência vinda deles, como um mesmo sentimento sendo compartilhado por um grupo. Não, eles eram inigualavelmente de suma importância para ela. Todo o seu ser gritava isso. Que sentimento seria tão forte a ponto de revigorar a jovem antes tão debilitada? Ela podia calçar patins de salão e dançar numa discoteca se quisesse. Tudo por causa do toque deles.

ಌ사랑ಌ

    Hora após hora S/n trocava de posição na cama. Flashes desordenados do mais terrível ocorrido voltavam feito relâmpagos na sua mente. Como num quebra-cabeça, ela foi montando as peças ao invés de aproveitar o silêncio do hospital e adormecer. Spencer a aconselhara a descansar antes de apagar as luzes e conduziu as visitas para fora do quarto. Obviamente ela desobedeceu. Quem conseguiria pregar os olhos estando em dúvida da própria existência? Ela precisava se recuperar, e rápido.
    Com a luz da lua clareando só o suficiente para enxergar, a jovem foi encorajada pela vontade natural da vida a levantar e ir ao banheiro. Com sucesso, ela entrou no lavabo com o suporte de soro, jogou água da torneira no rosto, secou e se olhou no espelho. A boca dela formou todos os nomes que conheceu hoje, ou pensava ter conhecido.
    — Park Jimin... Kim Taehyung... Jeon Jungkook... Kim Namjoon... Kim Seokjin... Jung Hoseok e... e... — Ela usou o punho para massagear o malar. — E... e...
    Ela suspirou e assumiu a melhor postura que podia. O pescoço enegrecido trouxe outro raio, que atravessou seus nervos e fez ganir de dor. Aquelas mãos a sufocando, espremendo sua vitalidade para fora de seu corpo. Mãos nojentas, mãos pecadoras. O chorinho seguinte foi um alívio.
    S/n, sentindo-se um tanto melhor, conseguiu sorrir para a própria figura no espelho, pois ambas pensavam naquela história como um clichê da Disney. Seria a madrasta para fazer a comparação ideal, no entanto ela achava graça que o ser maligno que a assombrava fosse o ex padrasto — a memória retornou até esse ponto. Quem diria que Nicolas tinha todo aquele rancor por ela, que colocaria a vida dela e de outras pessoas em perigo. Sua mãe sofreu no casamento e anos depois sua filha foi vítima da mesma iniquidade.
    O dia anterior estava nítido para ela agora, portanto não havia razão para querer recuperar tudo de uma só vez. Iria acontecer naturalmente. Assim ela esperava.
    Apagando a luz do lavabo, S/n entrou no brilho da lua que cobria o quarto. Uma silhueta estava parada sentada contra a claridade. A garota segurou o fôlego assustada com aquele contraste. Os pés descalços dela se moveram cautelosos no chão frio. Perto o bastante, ela ficou cara a cara com o garoto do ombro esfolado. Os olhos dele, antes vazios e sem cor, assim que viram os dela, brilharam que nem a explosão de uma supernova e ela não teve tempo de reagir.
    Os lábios dele nos dela pareciam tão certos. O braço saudável dele puxando-a para mais perto parecia tão familiar. E ela se deixou entregar, sentindo a garganta aquecer ao beijar de forma tão romântica a sua cura. Yoongi não conseguia parar, não conseguia parar de mordiscar a boquinha da S/n, de sentir seu gosto favorito. Ela era tudo que ele queria, tudo o que precisava. Era o elixir que salvaria sua vida.
    E, como se os seres donos do universo pudessem sentir pena daquele casal de humanos, uma onda gigantesca afogou S/n, tirando o ar de seus pulmões. Ela o empurrou levemente, lambeu os lábios devagar com os olhos fechados e depois o encarou com eles marejados. Estava saindo da água de cabeça erguida e com a pele bronzeada. A praia estava lá, o mar, as gaivotas. Tudo era pura luz e ela enxergava nitidamente.
    — Min Yoongi... — S/n exasperou como se aquele nome fizesse tão parte dela quanto a própria alma.
    Ela se lembrou de tudo.
    Ele sorriu curado.

❝𝐂𝐨𝐥𝐨𝐫𝐬 ❼ ❞Onde histórias criam vida. Descubra agora