parte 51.

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[...] Horas atrás

— É a árvore branca mais linda que eu já vi. — a esposa dele o enche de beijos emocionados depois de ver a árvore montada pela décima vez.

Solto uma risadinha de cabeça baixa, me esforçando pra me concentrar na revisão de matemática. Como não tenho quarto, só me sobrou a sala pra estudar. Pior coisa, não tenho privacidade.

— Gostou mesmo? — ele pergunta com uma voz suave, o que me faz estranhar. Tio Cristiano é carinhoso, mas não tanto.

— Sim. — ela o beija de novo e eu coloco a língua pra fora. Infelizmente os dois percebem meu gesto. — Algum problema, Maria?

— Não. Imagina. — disfarço.

— Hm. — ela emite um som desconfiado.

— Tio, posso estudar no quintal? — pergunto encarando ele.

— Poder pode, mas já viu a zona que tá lá? Acho que você não vai se concentrar.

— Não tem problema. Eu levo uma cadeira e fico sentada num canto bom.

— Tudo bem. — ele concorda e eu começo a recolher meu material.

O quintal tá mesmo uma bagunça, com pedaços de móveis velhos cheios de poeira.

[...]

Pego meu livro e me recordo de uma conversa que ouvi na escola, no início do ano. Joana e outra menina falando que estudam para as provas ouvindo uma música ruim.

Elas disseram que o desgosto que sentiam pela música as faziam querer usar a matéria da escola como uma maneira de fugir, e se concentrar em algo além do ritmo ou da letra mal construída. Sempre achei a ideia uma bobeira, mas como tô insegura decido tentar.

Escolho uma canção que não é necessariamente ruim, mas que me traz péssimas lembranças. Ouvi ela no meu aniversário de catorze anos, na casa do meu avô um pouco antes dele sofrer um infarto. Quando aconteceu, minha mãe só soube xingar e discutir com todos.

Aquilo só tornou o momento ainda pior.

Uma angústia se forma no meu peito quando começa o refrão, é quando instantaneamente meus dedos trabalham com mais facilidade no exercício. Em minutos eu consigo terminar de responder. Meu Deus, não acredito que funcionou.

Talvez um dia eu deva agradecer Joana por isso. Ou talvez à mim mesma, já que lembrei de algo tão improvável. Ao pausar a música, vejo que meu celular tá no silencioso. Fiz isso há pouco tempo, não queria distrações, na verdade ainda não quero. Preciso acabar logo com isso.

Sinto falta do Rafael. De ouvir a voz dele e receber suas carícias. Será que ele não vai mesmo na festa? Mesmo se for, não o verei de qualquer jeito.

Um nome aparece na tela: Eduarda. Atendo depois do terceiro toque.

— Eaí, Maria? — ela diz antes que eu fale "alô" ou algo assim.

— O que foi, Eduarda? Eu tô estudando agora.

— Só queria te dizer uma coisa. O Rafael acabou de me ligar.

— Pra quê? — junto as sobrancelhas e quase derrubo meu lápis.

— Pra saber se você vai na festa, se tá realmente estudando, enfim. Já que eu e ele não somos íntimos, imagino que ele esteja perguntando isso pra todo mundo da sala.

— Será que ele vai? — falo sozinha sem querer.

— Não sei, mas vocês estão juntos?

— Isso não é da sua conta. — respondo.

— Calma, eu não tô com ciúmes. Eu nem gosto de você. — ela diz num tom estranho, parece tentar me convencer de algo.

— ...Tá bom. — alongo a frase. — O que disse pra ele?

— Então, sobre isso...

— Meu Deus, o que você fez? — me preocupo.

— Eu só quis fazer uma brincadeirinha pra descontrair. Disse que você tá puta com ele e vai na festa pra pegar geral. — ela ri.

— Que brincadeira de mal gosto, garota!

— Qual é, Maria. Eu duvido que ele tenha acreditad-

Desligo antes dela terminar e imediatamente procuro o contato de Rafael. Fico indecisa na hora de ligar, então resolvo tentar o número da Clarissa. Eles são amigos, talvez ela esteja sabendo.

— Maria? — ela atende.

— Clarissa, o Rafael tá com você?

— Como assim?

— Vocês estão no mesmo lugar agora? — me desespero.

— Ele tá aqui sim. Mas foi no banheiro.

— Então você sabe do que a Eduarda falou pra ele, né? Eu ainda esgano aquela menina, sério. Espero que não tenham acreditado, por fav-

— Maria, calma. Eu não acreditei. Mas ele sim. Inclusive ele vai na festa hoje só pra conferir, e não quer mudar de ideia.

— Mas o que deu nele pra acreditar assim em alguém que mal conhece?!

— É que ele lembrou que essa Eduarda é aquela que te beijou numa balada aí.

— Mano! Por acaso ele me ligou? Espera, deixa eu ver... — vejo o meu histórico de chamadas não atendidas e tem várias dele.

— Acho melhor cê ir pra vocês resolverem isso logo. — ela aconselha.

— Merda, não era isso que eu tinha planejado. Mas tudo bem, eu vou. — suspiro cansada.

É, acho que já estudei o bastante. Agora terei que mudar meus planos em nome da saúde da minha relação com um estressadinho aí, que acredita em todos menos em mim.

egoísta [r.l]Onde histórias criam vida. Descubra agora