parte 31.

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Ponto de vista: Rafael

Foi o pior jantar/lanche que eu já presenciei. Os assuntos migraram de "anos oitenta" para "o alcoolismo de Rafael". Me senti um merda, então voltei irritado pro meu quarto.

Pego meu celular e clico no contato de Maria. Como eu quero mandar uma mensagem, perguntar se ela tá bem. Mas não dá. Nunca vai dar, eu odeio isso. De tanto estresse, quase jogo o aparelho na parede. Antes que isso aconteça alguém bate na porta, e eu até já sei quem é.

— Fala, vó... — resmungo antes mesmo de ver quem é, e quando vejo, me surpreendo.

Clarissa entra calmamente quase esbarrando nossos ombros. Ela olha em volta e acaba se sentando na cama.

— Legal. — ela faz um elogio, eu acho.

— O que você quer? — pergunto.

— Não sei. O que você quer?

— Quê? — junto as sobrancelhas.

— Foi você que saiu todo nervosinho da cozinha. — ela debocha.

— Não tava ocupada demais no seu celular pra notar? — rebato.

— Tava, mas eu sou diferente dos outros. — ela se levanta e vem até mim, até apontar seu dedo indicador no meu peito. — Eu tenho um terceiro olho, ele fica na minha testa. Os outros dois estavam ocupados, esse não. A minha franja esconde, mas nem tanto.

— Tá e...e eu com isso? — questiono, completamente confuso. Ela é retardada?

— Você é alcoólatra, né? — ela levanta o queixo.

— Sou. — respondo olhando pra uma direção qualquer, desconfortável com a pergunta.

— Minha mãe era. — a garota volta a se sentar na cama.

— Ela se curou? — me aproximo, sentando ao seu lado.

— Digamos que sim.

— Como?

— Ela morreu. — ela olha pra baixo, mas não parece emotiva ao tocar num assunto sério desse.

— De overdose? — arregalo os olhos.

— Não. Ela tava dirigindo bêbada e sofreu um acidente. Então, Rafael... — ela me olha nos olhos. — Você parece ser inteligente, então me dê ouvidos à partir de agora, ok?

— Por que eu faria isso?

— Porque eu mais do que qualquer garota que você conhece sei o que é conviver com um viciado.

— E daí? — bufo. — Acha que pode me salvar? Você mal me conhece.

— Você pode se salvar sozinho. Basta querer. Agora se quiser voltar à ser um sem rumo que não faz merda nenhuma da vida, fique à vontade.

— Que papo é esse?

— Eu te desafio. — ela estende sua mão na intenção de eu aperta-la. — A fazer o máximo de esforço pra sair dessa.

— Tá. Tanto faz. Pode ser. — faço o que ela quer, ainda achando isso a coisa mais estranha do dia.

— Agora vem. Quero te mostrar uma coisa. — ela me puxa.

Chegamos no lado de fora da minha casa. Clarissa abre os braços e olha pro céu de uma forma esquisita.

— O que tá fazendo?

— Olha pra cima. Vai! — ela diz e eu faço com desânimo. — O que tá vendo?

— O céu, ué. Você tá vendo uma carruagem em forma de abóbora? — debocho.

— Se concentra. O céu e mais o quê?

— Nuvens, estrelas, a lua. Por que?

— Nós não somos nada perto do universo, certo? Moramos numa bola que gira em torno de si mesma e do sol ao mesmo tempo. Ou seja, tudo que fazemos no fim não vai servir pra nada. Não vai importar. E os nossos vícios são o que nos faz sentir vivos, porém são o que mais nos destroem. Somos muito pequenos, muito insignificantes. Como uma própria abóbora de contos de fada. Acha que na hora da sua morte vai pensar num legume gigante? Não, óbvio. Você vai pensar no que devia ter feito pra mudar as coisas que não foram feitas.

— Nossa. Que erva você fuma? Me empresta aí.

— Foi só um pouco de tudo o que se passa pela minha cabeça. Com o tempo você se acostuma. — ela dá de ombros e sorri.

— Foi a coisa mais óbvia de todas, isso sim.

— Credo. Você é sempre desse jeito? — ela revira os olhos. — Ei, olha pra cima agora! — Clarissa pede rapidamente e eu faço, com certo receio.

— Por que? O que foi? — fecho os olhos com força ao sentir gotas de chuva caírem dentro deles.

Esfrego minhas pálpebras com os dedos enquanto Clarissa ri.

— Entendeu? — ela gargalha altamente.

— Vem aqui, você vai ver! — corro atrás dela e a garota tenta escapar. Envolvo ela nos meus braços, à prendendo. Ela me olha de testa franzida e rosto úmido.

Lembro de Maria e por um reflexo automático, roubo um beijo de Clarissa. Ela me dá um tapa pouco tempo depois e eu me afasto.

— Ai! — gemo de dor, mesmo não tendo doído tanto assim.

— Não era pra você me beijar. — ela limpa a própria boca.

— Foi mal. — me desculpo sentindo uma leve culpa. Eu nem sequer senti nada, eu acho.

— Tudo bem. — ela volta à rir e ao ver minha reação, entra rapidamente em casa.

egoísta [r.l]Onde histórias criam vida. Descubra agora