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Comecei a lembrar-me mais do México depois de ter visto o cartaz na montra da churrasqueira com a mascote do mundial de futebol que, em 1986, acontecera nesse país americano, como eu muito bem sabia. Oh, se sabia! A minha mente puxava, mesmo contra a minha vontade, uma memória específica catalisada por um qualquer detalhe que servia de desculpa, a fagulha que acendia a fogueira que haveria de se transformar num incêndio. Um gesto, uma imagem, um som e lá ia eu pelo túnel traiçoeiro das recordações.

Na verdade, queria ter-me esquecido da minha aventura mexicana, pelo menos durante as minhas férias grandes, para não ficar melancólica e a suspirar pelos cantos com as saudades imensas que sentia dos meus novos amigos. Mas o cartaz apareceu e eu já não conseguia evitar pensar sobre a caixa de sapatos que, na estante do meu quarto, guardava o meu grande segredo.

O regresso do México tinha acontecido havia mais ou menos dez dias e estava tudo ainda demasiado fresco na minha cabeça. Ao contrário do que temia, o que experimentei e vivi não se tinha desvanecido. Pelo contrário, cada instante que recordava tornava-se mais nítido, pujante, sólido, concreto. Não fora um sonho, uma história igual a tantas outras que tinha inventado na minha cabeça e transcrito para o papel. Aquilo tinha-me mesmo acontecido.

E por cada momento que instalava na minha mente, revendo o filme dos acontecimentos sem uma ordem específica, rasgava-se-me uma dor na alma, como se me tivessem arrancado um pequeno pedaço e a ferida não tivesse chegado a cicatrizar, uma impressão que me cortava o ar quando menos esperava, um solavanco que me deixava inerte e mole.

Dava por mim, durante um mergulho no mar frio, a lembrar-me da piscina do hotel de Puebla e de uma certa competição trapalhona de natação.

Dava por mim, a trincar uma sandes deliciosa de queijo, a lembrar-me de uma sandes idêntica que comera no intervalo de um jogo de futebol visualizado numa tela branca, como se fosse um cinema, numa sala escura.

Dava por mim, estendida na areia, a recordar o calor dos dias literalmente infernais no país dos aztecas que era combatido com um delicioso ar condicionado que eu usava e abusava.

Dava por mim, à noite, depois de um dia longo de praia, a pele vermelha e dorida queimada pelo sol, deitada na cama que acabara de fazer com os lençóis frescos que depressa aqueciam, a lembrar-me de uma festa nos jardins do hotel que comemorara a vitória no jogo dessa tarde.

Dava por mim a sorrir ao visualizar nos meus sonhos acordados o sorriso de Jean-Marie Pfaff quando me chamava de ma petite, quando me abraçava e me fazia uma carícia nos cabelos.

Dava por mim a ruborizar ao voltar a sentir nos meus dedos o aperto cálido de Diego Armando Maradona quando ele, num gesto que lhe era natural, me dava a mão para me manter junto a si e, assim, me proteger.

Dava por mim a ficar embasbacada e a olhar para nenhures ao dar-me conta de que tinha sido, por uma tarde, a namorada de Stéphane Demol e que fora, durante muitas tardes a menina da sua seleção que era protegida como um talismã precioso.

Dava por mim a desenhar as linhas da palma da mão direita com os dedos da esquerda, devagar, a recordar-me de quando Jorge Luis Burruchaga me lera a sina, no churrasco na véspera do jogo da final.

Dava por mim a chorar, de dia, de noite, a limpar as lágrimas às escondidas para ninguém reparar, a deixá-las correr livremente e a encharcar a minha almofada, porque o que tivera no México era passado e já não podia recuperar aqueles dias e aquelas noites que já tinham sido, pertenciam à história e ao meu diário que jazia no fundo da caixa de sapatos, a não ser através daquelas lembranças que eu ciosamente revisitava, mas que também escorraçava, irritada por me afetarem tanto.

Aqueles Dias de MaravilhaOnde histórias criam vida. Descubra agora