14.

36 5 48
                                    


Acordei com risinhos.

No início não me fizeram impressão. Era ruído de fundo que ia e vinha em vagas, muito ao longe, sem prejudicar o meu sono delicioso e quente. Depois alarmei-me com a minha situação, porque havia qualquer coisa que não estava bem, que me avisava em histerismo que não podia estar tão relaxada naquela cama estranha, com cheiros estranhos, a ouvir risinhos estranhos. Era tudo estranho.

Sentei-me como se impulsionada por uma mola, a arfar, de olhos esbugalhados, a ver tudo desfocado por causa da minha miopia, assustada e confusa, sem saber se o que me tinha acontecido era verdade ou se fazia parte de mais um dos meus sonhos. Girei o pescoço, a luz acinzentada e invernal coava-se pelo cortinado que tapava a janela.

Os risinhos voltaram.

Vi vultos a se moverem na fresta da porta entreaberta. Estavam ali e depois deixaram de estar.

Catei os meus óculos, coloquei-os sobre o rosto.

Os risinhos continuaram. Uma cabeça muito loira assomou-se brevemente e sumiu-se de seguida. Murmúrios, arquejos, mais risinhos. Três meninas que se acoitavam atrás da porta que oscilava, que fora aberta por uma delas que segurava na maçaneta e que controlava a pequena nesga que usavam para espreitarem para dentro do quarto, para vigiarem a forasteira que ocupava a cama, a pessoa desconhecida que lhes espicaçava a curiosidade.

Afastei o cobertor com cuidado, coloquei os pés descalços na alcatifa. Calcei umas pantufas que vinham com a mobília, não me fiz rogada. De resto não tinha trazido nada para calçar a não ser as botas da rua que não serviam para a neve.

Mais risinhos.

– Olá... bom dia – disse em francês.

A minha voz fez calar o trio. Silenciaram-se tão abruptamente que foi como se tivessem sido sugadas da face da terra, diluídas em fumo, petrificadas em estátuas. Não avancei, temendo sobressaltá-las e fazê-las fugir aos gritos. Portanto, sentada na cama, a fixar a porta, aguardei que viessem ter comigo e que abandonassem definitivamente a emboscada que me faziam.

Estava na casa de Jean-Marie, estava em Munique, na Alemanha. Ao formular esse pensamento, ao torná-lo concreto, ao comprovar a sua veracidade ao olhar em volta vendo os recantos do quarto onde passara a noite, a felicidade invadia-me e embriagava-me. Ficava tonta de tanta alegria, orgulhosa do meu feito, da minha coragem, da minha ousadia, muito vaidosa comigo mesma por ter sido capaz, com as minhas poucas ferramentas, sem acesso a praticamente nada, nos meus inexperientes quinze anos, de chegar ali, de recuperar o que fizera meu no último verão. Compreendi que estaria sempre ao meu alcance, o que quer que eu pensasse fazer, que nada me estaria nunca vedado se me empenhasse, se acreditasse, se trabalhasse com afinco.

A porta abriu-se de par em par. Entraram três meninas loiras, com o cabelo apanhado em tranças, ganchos a afastar a franja dos olhos, vestidas de igual com blusas de gola alta, vestidos e meias-calças, a mais alta e a mais velha a liderar o cortejo arrojado. Desafiavam-me com a invasão ao meu quarto. As duas mais novas, que pareciam gémeas, caminhavam de mão dada atrás da irmã, a olhar-me através das pestanas, amedrontadas, incertas se estariam a proceder bem.

– Bom dia – repeti.

– Bom dia – respondeu a mais velha.

Era alta, sim, mais ou menos do meu tamanho, o seu casaco iria servir-me, já podia enfrentar a neve e o frio da rua.

– Como se chamam? – perguntei. Eu já sabia como se chamavam, Jean-Marie tinha-me dito os seus nomes, na primeira carta que me escreveu, mas quis que elas se apresentassem. Notei que estavam nervosas, embora disfarçassem com uma atitude temerária. Estavam também muito curiosas e aflitas para comunicarem depressa comigo, para se tornarem mais próximas de mim sem os pais por perto, para que pudessem utilizar os códigos que as deixariam mais à vontade e também numa posição de domínio. Eu devia submeter-me porque estava na sua casa. Era um jogo interessante, mas eu estava habituada a crianças e não me apanhariam nas suas ratoeiras. Lidava com os meus primos mais novos com desenvoltura e há pouco tempo também fora como elas.

Aqueles Dias de MaravilhaOnde histórias criam vida. Descubra agora