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O belga Jean-Marie Pfaff era jogador do Bayern de Munique havia oito anos. Oito temporadas que foram longas, completas, intensas. Ganhou campeonatos, taças, medalhas, diplomas, prémios, reconhecimento. Participou em jogos caseiros e internacionais, fez viagens, conheceu lugares diferentes, cumpriu muitos quilómetros de autocarro e de avião. Hotéis, centros de estágio, estádios, balneários. Imagem em jornal, em revista, em televisão. Interagiu com outros jogadores que foram amigos, adversários, companheiros e rivais. Teve momentos bons, momentos maus, fez-se amado e fez-se odiado. Treinou, jogou, lesionou-se, recuperou, voltou a jogar. Foi excelente, foi medíocre, foi normal, excedeu-se, eclipsou-se, cumpriu. E, um dia, a viagem teria o seu fim.

Foi feliz no clube e na cidade, chegava a hora do adeus. Novos desafios, novas competições, outras exigências. O tempo passava, os anos pesavam, nem sempre era possível manter o nível elevado, havia que perceber os limites – do corpo, do espírito, do próprio mundo. A vida não era só futebol, havia o resto. E o que havia para além da profissão, do desporto, da bola era bem mais vasto do que um campo relvado marcado com linhas brancas que compunham várias figuras geométricas.

Dissera-me, no mundial do México, que não se queria arrastar enquanto futebolista, já tinha mais de trinta anos, que era velho! Dissera-me, lembrava-me muito bem, que não queria implorar por um lugar num plantel, pela titularidade, para jogar, para provar que ainda sabia defender bolas com razoável perícia.

O futebol era ingrato – corria-se, corria-se muito, corria-se até que se esgotassem as energias, até que a novidade terminasse. O futebol era dos mais jovens, os que guardavam surpresas, os que podiam fazer promessas, os que mostravam a inocência intocada. Os mais antigos, os gastos, os estafados, aqueles cheios de vícios e de manias, ainda conseguiam maravilhar, mas tornavam-se lentos, previsíveis, entediantes, pesados, baços. Tinham de ser substituídos. O futebol era assim – uma eterna substituição, imparável, jogadores que entram, que saem, que executam, que marcam, que se esquecem, que se recordam, que se homenageiam, que se eliminam.

Quando o banco se tornava mais permanente do que calçar as luvas ou as chuteiras, era sinal de que se devia parar, tomar coragem, levantar o braço e dizer: terminou. Vou sair. Se custava? Custava bastante. Os finais podiam ser de dois tipos, abruptos ou suaves. Ele tinha escolhido o último. O choque era sempre grande, mas podiam-se minimizar os danos colaterais e ir preparando o físico para a desabituação.

– Ah, Cristina! Por favor, para de chorar! – pediu-me exasperado. – Ainda vão pensar que te fiz mal. Anda, limpa essas lágrimas. – Estendeu-me um lenço que retirou do bolso interior do casaco. – Queres ir lavar a cara? Não? Não... Certo. Ouviste o que eu te disse, Cristina?

Ele gostava de usar o meu nome, não o meu diminutivo, quando se zangava, quando eu deixava de ser uma mulher e escolhia ser a idiota de uma adolescente instável e dramática. Odiei-me por ter perdido as estribeiras.

– Ouviste-me?

Acenei que sim com a cabeça.

– Responde-me, por favor.

– Ouvi, Jean-Marie.

– Que reação foi essa, ma petite? – perguntou bastante desiludido.

– Não sei...

– Eu sei que reação foi – explicou por mim. – Não estás preparada para aceitares o futebol em todas as suas dimensões. Há vitórias, taças e dias extraordinários. Mas também há derrotas, humilhações e dias negros. Despedidas. O Michel Platini, o melhor jogador francês de sempre, está, neste preciso momento, a dizer adeus à carreira de futebolista, neste mesmo estádio, ali fora, no relvado. E sabes que mais? Ele não sai totalmente do futebol! Existem tantos caminhos, tantas possibilidades. – Abriu os braços, suspirou alto. – O que interessa é sermos felizes, cuidarmos da nossa família e amarmos quem nos ama. Um dia vais compreender melhor as minhas palavras.

Aqueles Dias de MaravilhaOnde histórias criam vida. Descubra agora