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Se me perguntarem como foi o verão de 1987 não me consigo lembrar. Teve dias interessantes, como aquele em que larguei os óculos para sempre, porque nunca mais os iria pôr a partir do momento em que passei a usar lentes de contacto, fiz esse voto e decidi-me a cumpri-lo teimosamente, mas o resto do tempo passou num borrão, dias iguais e vazios, noites quentes pejadas de mosquitos, com sonhos que se travestiam em pesadelos, lembranças e lágrimas, a odiar-me a mim mesma por sucumbir a esse rol de tristezas e de silêncios, quando de dia, com a luz do Sol, mostrava-me alegre, descontraída e espirituosa, quando me mostrava adulta e segura dos passos que dava. Tinha cuidado com a minha aparência, pedi à minha tia Irene que me ensinasse a maquilhar-me e passei a ter um estojo simples com meia dúzia de cosméticos básicos. Descartei as minhas roupas velhas e os sapatos fora de moda. Fiz uma arrumação profunda no meu quarto, afastando tudo o que achasse demasiado infantil e excessivamente mimoso. Guardei brinquedos e objetos que me ligavam a uma memória emocional especial, o resto entreguei à minha mãe para que fizesse uma doação – ou aos meus primos mais pequenos, ou a alguma obra de beneficência. Precisava de uma nova mobília de quarto, mas não quis exagerar. Limitei-me a mudar os móveis de lugar.

O verão foi, assim, trabalhoso e dedicado a alterações que se refletiram no exterior, porque por dentro já eu tinha mudado desde o ano passado. Ninguém estranhou ou fizeram perguntas intrusivas, acharam que era uma mania minha, um capricho, a vontade de afirmação que vinha com a idade. No jantar de família a tia Joana resolveu destacar-me para me humilhar. Era habitual nela ir contra a maré, contradizer o bom senso pré-estabelecido.

– Deixas a tua filha andar nesses preparos? – perguntou, fingindo perplexidade, dirigindo-se à minha mãe.

– Que preparos? Ela está muito bem.

– Já usa maquilhagem... tem quinze anos, querida. É demasiado cedo.

– No nosso tempo usávamos maquilhagem mais novas – justificou a minha mãe, incomodada.

– Sim, para arranjarmos um namorado. Andas à procura de namorado, Tina?

Encarei a tia Joana com uma expressão esfíngica. Ela tinha aquele sorriso trocista que me irritava, que me dava instintos assassinos. Se pudesse, dava-lhe uma bofetada, mas não podia, porque ela era a irmã do meu pai e era minha obrigação respeitar os mais velhos, ainda que os mais velhos, por vezes e naquela ocasião em específico, não merecessem nenhum respeito.

– Ela já tem um namorado, Joana – disse a tia Anita.

– O que é que sabes que eu não sei? – admirou-se a tia Joana.

– Sei o mesmo que tu. A Tina tem um namorado mexicano.

– Oh... é o mesmo namorado do ano passado? Isso ainda continua?

– Ela contou-me há pouco tempo que continua. Não é verdade, Tina?

– Sim, tia – confirmei com um suspiro.

– E vais ver esse teu namorado mexicano quando? Pensas regressar ao México, Anita, e levar a Cristina outra vez contigo? – perguntou a tia Joana com desdém. – O teu doutoramento está terminado, segundo me constou... Isso é um namorico que não tem qualquer futuro. Tina, esquece esse rapazinho. E quanto mais depressa o fizeres, melhor.

Jamais me vou esquecer do mundial do México!, gritei por dentro.

– O rapaz já lhe telefona e tudo...

Os olhos de todos voltaram-se para o meu pai. Eu corei terrivelmente. As minhas bochechas ficaram mais vermelhas que os meus lábios, sobre os quais tinha passado uma cor num tom claro de rosa. A gargalhada da tia Joana fez-me estremecer.

Aqueles Dias de MaravilhaOnde histórias criam vida. Descubra agora