93.

16 4 26
                                    


Para o Natal recebi uma máquina de escrever. Fui eu que pedi aquela prenda, alegando que iria começar a trabalhar oficialmente no meu primeiro romance. O meu pai achou piada à minha petulância e ofereceu-me a máquina, que era verde e preta, que cheirava a metal e a tinta, que fazia um barulho de metralhadora quando eu pressionava as suas teclas duras.

Comecei por passar os apontamentos que tinha sobre História e que se encontravam dispersos em vários cadernos e folhas acumuladas numa pasta de cartolina com elásticos. Primeiro, experimentava a máquina, a sua mecânica, os pequenos truques para apresentar textos datilografados bonitos, com as margens mais ou menos certas, sublinhados, letras em maiúsculas, letras na segunda cor da fita que era o vermelho, para realçar títulos. Só depois contava começar a escrever a minha história.

As minhas tardes das férias eram ocupadas diante da máquina de escrever que o meu pai me entregou, sem estar embrulhada sequer, antes do Natal. Punha-me à experiência. Via se era mesmo aquilo que eu queria porque era tida por caprichosa. Hoje gostava de uma coisa, amanhã os meus gostos mudavam radicalmente. Via se tinha de me comprar outra prenda para eu não ficar com o meu espaço vazio debaixo da árvore de Natal que era, por aqueles tempos, onde colocávamos as prendas da família que abríamos na noite da consoada, a seguir ao jantar.

Dediquei-me à máquina. Era exigente e ruidosa, aleijava-me os dedos quando os raspava entre as teclas que falhava por querer escrever mais depressa do que a minha destreza incipiente de principiante, gastava rolos de fita a uma velocidade estonteante que me davam talhadas inesperadas na minha mesada porque eram caros, mas estava a adorar aquela distração, que me fazia rever os meus estudos e a minha paixão pela História que, desde o verão de 1986, tinha conhecido um interregno.

Não criei aquele passatempo para agradar ao meu pai. Escrevia à máquina para ter o que fazer nas férias, para me dedicar à escrita, por mim mesma. O ócio sempre me tinha assustado, as longas divagações da mente, os espaços em branco e os cenários vazios. Ultimamente tinham-me acontecido muitas coisas que, se eu não preenchesse os meus dias, me deixariam a pensar demasiado.

Por outro lado, também estava empenhada em recomeçar a escrever, mas escrever a sério. Na minha carreira amadora de autora só tinha escrito pequenos contos, histórias de meia dúzia de páginas para as minhas amigas, composições infantis. Eu ambicionava escrever um livro e que esta obra inaugural fosse um romance histórico. Entusiasmara-me com os elogios que a Marta me tecera, por causa da história que lhe escrevi com o rapaz por quem ela sentia um fraquinho, o tal de Ricardo que andava no liceu. Ela mostrava a história a toda a gente, dizia, foi a Cristina que escreveu, sim, a Tina. Disse-me que a mãe também lera e que tinha adorado, eu tinha muito jeito, devia continuar a escrever. A mãe dela era professora e eu achei que aquela era uma opinião certificada.

Quando me sentei, pela primeira vez, diante da máquina de escrever que brilhava de nova, estabeleci como objetivo começar o meu romance histórico. Se fosse logo aos apontamentos e rascunhos que tinha feito em Nápoles acabaria por me deprimir por ser capturada sem remédio por umas saudades infinitas do meu querido amigo argentino. Desconfiei que ficaria doente de tanta tristeza, porque com a falta que Diego me fazia, a falta que Jean-Marie me fazia, a falta que o futebol me fazia, era bem capaz de cair à cama e falhar as festas do Natal e da passagem do ano. Então decidi começar pelos meus outros apontamentos, ir entrando aos poucos na História, para quando chegasse ao caderno que tinha levado para Nápoles vê-lo como a continuação natural de toda aquela bibliografia avulsa. Revelou-se uma escolha mais do que acertada e a minha motivação disparou. Sim, iria começar a escrever o meu romance.

Determinei que não me iria frustrar com as primeiras dificuldades. Esse livro iria ser uma empreitada de grande fôlego, muito diferente de uma história de aventuras ou de princesas. Tinha de começar bem, de ter uma boa estrutura por detrás, que iria construir pacientemente. Era um enorme desafio para mim que era naturalmente impaciente, que gostava de ver os resultados a aparecer depois do meu esforço. Fiz a analogia com o atletismo. Iria correr uma maratona, não os cem metros. Tinha de saber gerir as minhas capacidades e não desperdiçar recursos que seriam importantes ao longo do percurso.

Aqueles Dias de MaravilhaOnde histórias criam vida. Descubra agora