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Tentei escrever no meu caderno, a contar o fim-de-semana em Paris e o jogo de despedida de Platini, mas não conjurava a frase de abertura. Nenhuma me parecia adequada. Se quisesse ser honesta teria de falar de uma festa, de momentos excelentes, de surpresas agradáveis, de um jogo de futebol inesquecível. A conclusão desses dias, porém, ensombrava a parte boa e eu não conseguia desligar-me dos acontecimentos que me separaram de Jean-Marie e de Diego. Ao fim de algumas tentativas, primeiro a pensar em palavras, depois a rascunhá-las num papel que acabei por amarrotar e deitar fora, desisti. Fechei o caderno e estendi-me na cama.

Por razões muito práticas, o meu sonho de futebol ficara reduzido a Jean-Marie e a Diego. No mundial tinha feito amizade com muitos futebolistas, belgas e argentinos, mas quando não se encontravam concentrados numa única seleção, dispersavam-se por várias equipas e até por vários países. Era possível encontrá-los e chegara a encontrar alguns nestes últimos dois anos, mas era impraticável e tornava-se basicamente impossível para alguém como eu – adolescente, estudante, dependente de uma série de fatores, como dinheiro, calendários escolares, boa vontade alheia, o desconhecimento dos meus pais do que fazia. Então, cingi-me aos meus dois amigos principais, chamemos-lhe assim: Jean-Marie e Diego. Isso não queria dizer que não sentia falta de Enzo, de Nico, de Jan, de Stéphane, de Georges, de Leo, que não pensava com carinho em Jorge, Tata, Jorgito, Julio, Nery, Ricardo, Óscar. Servia-me muitas vezes de uma cassete de vídeo, na qual gravara alguns programas desportivos que falavam do campeonato do mundo, com resumos dos jogos principais, especialmente os da Argentina, para matar as saudades. Isso era quase suficiente... Sentia-me bem assim que desligava a televisão, depois sentia-me mal porque imagens a duas dimensões dentro de uma caixa não eram substituto da presença de nenhum deles.

No entanto, não tinha o poder, nem a capacidade, de alterar esse estado de coisas. Para que aquilo que tinha vivido no México não desaparecesse e, de certa forma, se mantivesse vivo, apavorava-me o facto de se passar tanto tempo que eles se desligassem de mim, fizera de Jean-Marie e de Diego os meus embaixadores da Bélgica e da Argentina. Foram-me mais próximos do que os demais no mundial. Fora do âmbito futebol, Jean-Marie tinha uma família acolhedora composta maioritariamente por mulheres que me receberam muito bem, Diego tinha um avião particular à sua disposição e dinheiro a rodos, pelo que podia financiar as minhas viagens sem qualquer problema.

Como disse, razões práticas.

Através de Jean-Marie e de Diego eu reencontrara outros belgas e outros argentinos. Estava tudo perfeito para mim. Mas desde aquele dia de maio que eu vacilava e temia que tudo tivesse terminado. Fim do sonho. Diego mostrara-se bastante zangado comigo porque eu dava atenção ao belga e Jean-Marie estava a deixar aos poucos o futebol, abandonando voluntariamente o palco iluminado onde se movimentara, enquanto desportista profissional, nos últimos quinze anos. Tudo isso intrigava-me e entristecia-me, pois julgava que tinha feito as apostas erradas.

Mas se não fossem Jean-Marie ou Diego nunca eu teria convivido com a seleção da Bélgica e com a campeã Argentina no mundial. E se não fossem Jean-Marie ou Diego jamais teria sido introduzida numa família linda que eu adorava e que sentia como minha, ou teria viajado de avião particular e visitado a antiga cidade de Pompeia.

Por isso, não tinha escolhido mal. Existiam simplesmente novos pressupostos com os quais teria de lidar e que obrigavam a uma reconfiguração da minha posição e na perceção que tinha de quem eram, na minha vida, Jean-Marie e Diego. O mundial do México seria sempre perfeito, imutável e encontrava-se encerrado. A seguir a isso existia, e tinham existido naqueles dois anos, mais momentos maravilhosos que eu recordava também com muito carinho e felicidade sincera.

Passei os dedos pelas faces para limpar as lágrimas. Agora costumava chorar muito. Bastava ficar a pensar um pouco mais nas coisas, emocionava-me e chorava. Na maioria das vezes, em silêncio, fechada dentro de mim e das minhas penas, com medo de nunca mais conseguir recuperar a minha alegria despreocupada de outros tempos.

Aqueles Dias de MaravilhaOnde histórias criam vida. Descubra agora