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A filha da tia Anita nasceu no primeiro dia de março, no mesmo dia em que Diego jogava em Turim e o seu Napoli perdia por dois a zero com a Juventus. Na sexta-feira, mãe e bebé saíram do hospital e os meus pais fizeram uma visita imprevista a Lagoa para vê-las. Eu não percebi a pressa e o interesse. Não me convinha fazer aquela viagem por muitas razões. A primeira e principal era a minha partida para o Porto no sábado seguinte, com a minha turma. Tínhamos marcado encontrarmo-nos na porta da escola às sete da manhã, com a saída do autocarro marcada para as oito horas e não se toleravam atrasos porque esperavam-nos muitos quilómetros até Coimbra, onde faríamos uma paragem. A segunda razão era a final do mundial de juniores, na capital da Arábia Saudita, que acontecia entre a Nigéria e Portugal. Por sorte o Joaquim tinha a televisão ligada e fui vendo, a espaços irregulares, o jogo. A imagem era péssima, muito amarela, como se o campo tivesse areia em vez de relva e estivesse sob um calor abrasador ainda maior do que aquele clima impossível que os jogadores suportaram no mundial do México.

O parto foi complicado e a tia Anita estava ainda de cama, reclinada num monte de almofadas, a fazer algumas queixas, mas nada de muito profundo ou detalhado. Exibia a sua habitual energia e o brilho nos olhos que a caracterizavam. A única diferença era estar a falar e a gesticular sentada, vestida de pijama, com os cobertores sobre as pernas. Ao lado da cama estava o berço com a bebé, uma menina que se chamava Filipa. Era muito sossegada, gorda e fofa, embrulhada nos folhos mimosos que despontavam do babygrow, do casaquinho de malha e do gorro que lhe cobria as orelhas.

Encantei-me com as mãos pequeninas da minha nova prima. Fechadas em dois punhos adoráveis e quentes, a pele também muito cor-de-rosa, a descascar com falta de hidratação, o que era normal nos primeiros dias de exposição ao ar depois de ter estado confortavelmente dentro do líquido amniótico. Fiz-lhe uma carícia nos dedos, repetidamente, a ver como ela continuava impassível e pacificamente a dormir.

A tia Anita acabava de ser mãe. A Claudia estava grávida do segundo filho de Diego. E eu já sabia como se fazia um bebé. O meu estômago enrolou-se e senti uma tepidez a correr juntamente com a minha corrente sanguínea. Algo como o instinto maternal acendeu-se em mim, pelo menos foi assim que classifiquei aquela ternura e alegria que se apossou do meu espírito ao contemplar a minha prima adormecida, num sono tão suave que me remeteu a memórias agradáveis de pétalas de rosa e pó-de-talco.

Eu queria ter um bebé também, para embalar, para cuidar, para cingir ao meu corpo e amá-lo com o maior amor de todos. Para ver crescer, para orientar, para acompanhar, para ajudar em cada uma das maravilhosas etapas do desenvolvimento de uma pessoa. Um bebé querido, bonito, a quem eu tiraria milhares de fotografias, a quem eu compraria toneladas de brinquedos e vestiria com as roupinhas mais exclusivas da última moda.

Naquele momento, pareceu-me o melhor dos projetos de vida. A escola era uma chatice, estava farta dos professores, das matérias, dos colegas. Podia escrever o meu romance, tornar-me-ia uma escritora consagrada, faria muito dinheiro com os livros que haveria de escrever depois desse, viajaria muito para dar conferências sobre literatura, sobre as minhas obras. Não precisava da escola para nada, de me perder em mais um ano e meio no secundário, mais cinco anos num curso universitário.

A minha priminha torceu-se de repente, franziu o rostinho, abriu as mãozinhas, esticou os dedos, e desatou a vagir, entre soluços. Eu estava debruçada sobre o berço e, com aquela mudança de um bebé adorável para uma pequena trouxa chorona, endireitei as costas. A minha tia estendeu os braços, sem se levantar da cama, pediu que lha entregassem, estava na hora da mamada. A bebé chorava cada vez mais alto, num protesto que se ia tornando mais e mais esganiçado e irritante. O instinto maternal morreu em mim, como um girassol a fechar-se com o pôr-do-sol. Mas onde tinha eu a cabeça? Deixar a minha vida santa para uma vida de obrigações, de noites sem dormir, de doenças infantis, de falta de tempo, de seleção de sonhos?

Aqueles Dias de MaravilhaOnde histórias criam vida. Descubra agora