95.

12 4 14
                                    


Embora desejasse com todas as minhas forças que o tempo parasse, que se detivesse num determinado momento em que fui muito feliz e despreocupada, que ficasse petrificado num verão eterno onde se jogava o futebol mágico que fazia a minha equipa ganhar sempre, não importando o adversário, o tempo avançou impiedoso e, em meados de fevereiro, Portugal iria jogar com a Bélgica para determinar o apuramento para o próximo mundial.

Tratava-se do primeiro jogo entre as duas seleções e foi muito documentado e escrutinado pelos jornalistas da imprensa desportiva portuguesa, para meu desespero. Volta e meia passavam reportagens sobre o adversário da equipa das quinas e eu revia ora imagens do México, que incluíam defesas espetaculares de Jean-Marie, ora imagens de jogos mais recentes em que a baliza já estava ocupada por Preud'homme. Vacilava entre a raiva e a saudade, detestando-me pela minha ambiguidade. Podia continuar a apoiar os belgas, mas teimava em afastá-los de mim se Jean-Marie não fizesse parte dos convocados. Contra Portugal era uma história completamente diferente, tratava-se do meu país, embora se o jogo tivesse acontecido três anos antes, eu teria apoiado a Bélgica e sem qualquer embaraço. No início de 1987 tinha acontecido isso, num jogo que eu recordava agora com um carinho especial por causa do meu tio, que o vira comigo, e que falecera poucos meses depois. Jean-Marie não estivera em campo nessa altura, mas ainda jogava e o cenário era totalmente diferente daquele que eu enfrentava agora.

Não conseguia reconhecer a Bélgica que aparecia na minha televisão. Aliás, esforçava-me para não a reconhecer. Colocava um filtro de indiferença, de ressentimento e de despeito. Levava a resmungar contra as imagens, até que Jean-Marie surgia em dois segundos de tempo de antena e o gelo no meu coração se derretia. Arrependia-me mortalmente de todas as asneiras pensadas e ditas, pedia-lhe perdão, fenecia e refugiava-me num silêncio condoído.

À medida que o dia se aproximava fui ficando cada vez mais inquieta e melancólica, ao ponto de ter perdido o apetite. E aquele seria o primeiro de dois jogos. Primeiro, Portugal jogava em casa, depois haveria de ir visitar a Bélgica, em setembro.

Muito honestamente, não queria saber do resultado para nada. Portugal podia ganhar, perder ou empatar que me era indiferente. Descobri também que a seleção do meu país nem sequer era considerada uma das favoritas do grupo, era tratada com alguma sobranceria pela União Soviética e até pela Bélgica, que disputavam mais diretamente e entre si o apuramento para o mundial. Foi logo em fevereiro de 1989 que percebi que Portugal não teria grandes hipóteses de ir a Itália e desinteressei-me. Nos jogos do grupo, que se tinham iniciado em outubro do ano passado, vibrei quando Portugal ganhou, entristeci quando empatou ou perdeu, via a sua presença na competição magna de seleções cada vez mais improvável, mas quando ficou decidido que Portugal não iria regressar ao mundial e repetir o feito de 1986, não me afetou. Encolhi os ombros e segui com os meus assuntos. Já me tinha convencido de que o mundial em Itália teria a minha atenção exclusivamente centrada na Argentina e em Diego.

Poucos dias antes do jogo de Portugal contra a Bélgica, aconteceu o Carnaval. Não me ausentei para o estrangeiro durante essa pausa escolar e estranhei. Fiquei ansiosa e triste, senti-me traída. Esperava um convite para me deslocar a Nápoles, já que desde novembro que Diego não entrava em contacto comigo. Esperei até um telefonema para ir passar o fim-de-semana a Beveren, fazer máscaras novas com cartolina e marcadores. Mas ninguém me telefonou, ninguém falou comigo, ninguém me convidou.

Para esquecer a tristeza, fui a festas com colegas da turma. No sábado passeei pela rua dos bares, no domingo preparei uma fantasia de odalisca e na segunda-feira à noite fui novamente com a Marta até à discoteca de Vilamoura, o mesmo lugar onde festejara a passagem do ano. Dancei, diverti-me, revimos o Zézinho. Daquela vez, ele estava acompanhado com uma mulher que descobrimos ser a sua namorada, chamada Chantal. Era francesa, esgalgada, cabelo curto, elegante na sua máscara que evocava a década de 1920. Até usava uma boquilha como adereço e uma enorme pluma que espreitava da fita brilhante que lhe cingia a testa. Era esfíngica, magnífica, muito mais interessante do que duas adolescentes idiotas que só sabiam fazer olhinhos e lançar sinais. A Marta meteu conversa com ela, cansada de ver na rival um obstáculo intransponível. Dessa maneira, aproximou-se do Zézinho e manteve a inimiga perto para contornar algum golpe à socapa. Deixei a Marta sozinha a fazer aquele jogo inútil, que me impacientava. A partir do momento em que o Zézinho era comprometido tornava-se terreno proibido e desinteressante. Estava a ser hipócrita, tinha a plena consciência disso. Pensei na minha situação com Diego. Também eu era amiga da Claudia, mas não sabia dizer se seria pelos mesmo motivos que a Marta se aproximara da Chantal. Se fossem, eu era pior do que a Marta. Fazia jogo escondido, dúbio, maldoso, sorria pela frente, para depois cravar as garras por detrás. Fiquei chocada com o meu azedume e dancei pelo resto da noite até me sentir a desfalecer, até expulsar de mim os pensamentos maus e as ideias absurdas. Eu e Diego não tínhamos nada! Era futebol e nada mais.

Aqueles Dias de MaravilhaOnde histórias criam vida. Descubra agora