92.

17 4 21
                                    


Telefonei a Jean-Marie no dia do seu trigésimo quinto aniversário. Era o início de dezembro e fazia um frio de rachar. Eu tinha puxado o aquecedor a óleo para perto do telefone para estar mais confortável e de vez em quando trocava a mão que segurava o auscultador, para as ir aquecendo à vez. Na Bélgica estaria mais frio de certeza, estaria a nevar, mas as casas nesse país tinham aquecimento central e era um consolo chegar da rua e aquecer-nos ao franquearmos a porta de entrada. Eu já tinha passado uns tempos nos invernos glaciais do norte da Europa e até tinha patinado num lago gelado.

Quando pensava nisso era como se tudo tivesse acontecido noutra vida. O mundial do México incluído. Essas experiências estavam tão longe de mim naquele dia que escarnecia da sua veracidade. Era tudo um sonho doido que tivera, convencia-me. A única maneira de colar a minha realidade cinzenta a esses momentos extraordinários era forçando a aproximação a quem tinha partilhado comigo a aventura irreal. Telefonando, por exemplo.

Por vezes, ficava abatida com uma melancolia sem fim. Olhava para o passado e sofria por não ser capaz de o habitar. Outras vezes, detestava a languidez daqueles estados de alma apáticos, censurava-me fortemente e lançava-me numa euforia despropositada que me transformava numa rapariga imbecil. Com tanta aprendizagem que absorvera, ainda não era capaz de definir um meio termo, um ponto de ancoragem e manter-me fixa durante um espaço de tempo razoável.

Jean-Marie atendeu-me a chamada jovial, com a sua típica boa disposição que me deixou imediatamente feliz. Repetiu os agradecimentos por me ter lembrado dele no seu dia, afirmou várias vezes que estava com muitas saudades minhas. Não nos víamos desde o verão e eram muitos meses sem estarmos juntos. Ele sentia a minha falta e eu não sabia se sentia a falta dele. A dúvida atrapalhou-me.

Perguntei-lhe sobre o campeonato belga, se ele estava a jogar. Respondeu-me laconicamente que estava tudo bem, de uma forma abrangente. O "estar tudo bem" podia significar muito ou podia não significar nada. Insisti, queixando-me de que em Portugal não ligavam nenhuma ao campeonato belga, para mim era completamente impossível saber como andavam as equipas a não ser que porventura jogassem nalguma competição europeia. Ia prosseguir com o assunto, mencionando o facto de todos os clubes portugueses terem sido afastados dos jogos europeus, então nem assim conseguia saber novidades da Bélgica, quando ele me interrompeu, falando mais alto dizendo que as meninas tinham perguntado por mim, queriam que a Tina as fosse visitar e que ele explicara que era difícil, a Tina estava na escola e desatou a palrar sobre as filhas.

A interrupção desfez qualquer coisa no meu interior. Senti claramente o rasgão, a rutura. O que havia antes transformou-se, era irrecuperável. Estranhei-o, desconfiei de que me tivesse enganado no número, não sabia com quem estava a falar. Jean-Marie, de um instante para o outro, tornou-se num estranho.

Sem futebol era como se eu não soubesse ter uma conversa com ele, como se tudo o que pudéssemos dizer um ao outro fosse desprovido de propósito, tão vazio como um poço sem fundo. O que nos unia, afinal? As filhas dele, que eram quase da minha idade? De resto não havia mais nada, a meu ver. Só as filhas, um ror de miúdas em escadinha que ele protegia e guiava para se tornarem mulheres respeitáveis e admiráveis, eu incluída. Mas eu nunca o quis como pai. Queria-o como, afinal? Como guarda-redes. Mas ser-se futebolista não durava para sempre e era até uma carreira que terminava por volta dos trinta, com sorte lá pelos quarenta, ainda na flor da idade, com tanta vida por percorrer, talhar e vencer. E depois de guarda-redes, quem era e o que queria ser Jean-Marie Pfaff? Eu não sabia. Apercebi-me de que não sabia nada sobre ele. Um perfeito desconhecido simpático a quem eu telefonara para lhe desejar um feliz aniversário.

As perguntas faziam um barulho medonho dentro da minha cabeça, ao ponto de me ter esquecido de o escutar. A mão do auscultador arrefeceu, troquei-a num gesto mole. Observei-a como se pertencesse a outro braço, não ao meu. Estava demasiado branca, a pele ressequida nos nós dos dedos. Precisava de calor. Baixei-a até ao aquecedor. Era uma mão insensível. Eu estava insensível.

Aqueles Dias de MaravilhaOnde histórias criam vida. Descubra agora