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Naquele domingo, vinte e cinco de março de 1990, estava um dia de Sol em Nápoles. Um dia maravilhoso de primavera, com um céu amplo e uma temperatura agradável, perfeito para criar memórias inolvidáveis.

O estádio estava completamente cheio, vestido de alegria, pintado de azul, embrulhado em bandeiras triunfantes, engalanado com faixas impantes. A cobertura de aço estava finalmente terminada e exibia um sistema de iluminação moderno, com os novos holofotes incorporados na estrutura metálica. Ainda existia um estaleiro no exterior que, por ser domingo, se encontrava encerrado, mas que se iria manter, pelo menos durante as próximas três semanas, para concluir as obras de remodelação a que o mundial obrigara. O San Paolo ficara extravagante e imponente com aquela pala gigantesca no topo das suas bancadas. Achei apropriado que se celebrasse ali o novo campeão de Itália de futebol daquela época.

Havia também muitas referências ao próximo campeonato do mundo que iria começar dali a dois meses, em junho. As mais evidentes eram as associadas aos patrocinadores nos painéis de publicidade, acumulados atrás das duas balizas. A marca que mais me deu no olho foi a Olivetti, que fornecia computadores. Vi também duas representações gigantes da mascote oficial chamada Ciao, um boneco articulado composto por blocos quadrados vermelhos, brancos e verdes, as cores da bandeira italiana, cuja cabeça era uma bola de futebol. À primeira vista era estranho, porque as mascotes dos eventos desportivos costumavam ser animais ou bonecos, num registo infantil destinado a captar a atenção dos mais novos. Lembrava-me de ter gostado muito da mascote do mundial de 1982 em Espanha, o Naranjito, por causa dos autocolantes que podíamos colecionar e que vinham junto a gelados que me refrescaram no verão desse ano. E tinha-me apaixonado quatro anos depois, por razões muito diferentes, pelo Pique, a malagueta verde do México. Em relação ao boneco cúbico que estava em posição de remate, a minha surpresa que começara por conter laivos de rejeição, dava lugar a um fascínio encantado pelo seu design arrojado. Foi naquela tarde de março, em que o Napoli e a Juventus se iam defrontar para mais uma jornada da Serie A, que decidi comprar um Ciao para mim, já que tinha falhado a aquisição de um Pique.

Vi o jogo no banco, ou melhor, num apêndice que fazia parte do banco napolitano e que ficava mais perto da curva B, junto a uma das balizas. Não me enxofrei com a proposta de Diego, percebi que ele não iria admitir as minhas reservas e muito menos uma recusa. Continuava a queixar-se do tornozelo esquerdo e a lesão tornava-o irritável. Iria jogar, nem que tivesse de deixar sangue, carne e tendões no campo, iria ajudar o Napoli a vencer aquele jogo.

Foi o Carmando quem, mais uma vez, me acompanhou e me protegeu. O massagista napolitano era um homem de poucas palavras, já me habituara ao seu feitio circunspecto e diligente, mas daquela vez foi ainda mais sucinto quando lhe perguntei sobre o tornozelo de Diego. Reparei que os dois tinham ficado parados durante algum tempo, momentos antes do início da partida, a conferir a mazela. Diego, de costas dobradas, ajeitava as ligaduras e a chuteira. Carmando, agachado, observava-o. Ante a minha pergunta, volveu os seus olhos pequenos e algo melancólicos para mim, respondeu-me, lacónico, que estava tudo bem, que Diego estaria em campo e colocou um ponto final. Aceitei a sua resposta. Sabia que ele não me iria revelar nada, mesmo que eu insistisse, as infiltrações que tinham sido necessárias, os analgésicos em doses cavalares, as grossas lágrimas de Diego de dentes cerrados. Então, conformei-me e achei que era suficiente. Diego alinhava como titular no início da partida e era o mais importante. Tudo o resto, no fim do dia, meses depois, passados os anos, deixaria de ter importância – só contaria, para memória futura, o resultado final.

Estava com a boneca mexicana nas mãos e o cachecol do Napoli no pescoço. O barulho da claque, à minha esquerda, era avassalador. Cantaram durante os noventa minutos, sem abrandar o ritmo, a confiança, a alegria, a berraria, o orgulho. Fiquei com uma enorme dor de cabeça, mas sorria por, em cada latejar, continuar a escutar o nome de Diego gritado ao vento, numa admiração ilimitada, num amor que envergonhava o meu.

O jogo, esse, foi memorável. O Napoli venceu a Juventus por três bolas a uma. Os dois primeiros golos foram marcados precisamente por Diego Maradona. Chorei de alegria. Sim, chorei, enquanto beijava a boneca e agradecia aos deuses por serem tão generosos. O primeiro golo, aos treze minutos, aproveitou uma bola que foi enviada para a grande área num passe que rasgou a relva. Diego apanhou-a, girou sobre si mesmo, pontapeou para a baliza e marcou. O segundo golo surgiu após um livre, um quarto de hora depois. Um pontapé de Diego com força, colocação e raiva, e o pobre do guarda-redes Tacconi, que se fartou de gritar com a sua barreira para que se mantivesse firme, bem que se esticou, mas não pôde deter aquele tiro fenomenal.

Na segunda parte, a Juventus reduziu com um golo de penálti, só que três minutos depois Francini marcou pelo Napoli e fixou o resultado em três a um. Os napolitanos estavam imparáveis. Os napolitanos não iriam perder aquele jogo. Careca esteve à beira de marcar o quarto golo. A bola embateu no poste de Tacconi que se mostrava bastante irritado na baliza, e houveram outras ocasiões flagrantes que podiam ter aumentado a vantagem, antes de a Juventus, que também fez jogadas boas, poder sonhar com um eventual empate. Quando Diego foi substituído aos oitenta e cinco minutos, debaixo de uma ovação monumental do estádio que o despedia de pé, sabia eu e sabiam todos os napolitanos, os que estavam em campo e os que estavam nas bancadas, que o campeonato estava salvo. O scudetto viria, uma vez mais, para a cidade do Sul. Para o reino das Duas Sicílias!

A Juventus não era uma equipa de se menosprezar, não senhora. O resultado de três a um com dois golos de Diego, que estava lesionado, que mostrou sofrimento durante a partida inteira, que nunca se esquivou a correr e a contribuir para o desenvolvimento e a superioridade da sua equipa no meio-campo apesar do tornozelo inchado, refletia especialmente um jogo de futebol bem disputado entre uma equipa coesa que já se conhecia muito bem, o Napoli, e uma equipa com grandes craques futebolísticos, a Juventus. Na equipa de Turim alinhavam o português Rui Barros, o russo Zavarov e um siciliano de vinte e cinco anos muito aguerrido chamado Salvatore Schillaci que, disseram-me, iria destacar-se na seleção de Itália no próximo mundial, que eu devia estar atenta. Se a vantagem pertencia, no fim da hora e meia, ao Napoli, fora mais do que merecida pelo espetáculo magnífico que tinha proporcionado naquele dia tão bonito de primavera.

Ficavam a faltar quatro jornadas, mas depois de ver a excelência do futebol que Diego e os seus companheiros praticavam, com fantasia, brio, disciplina e estratégia, com uma facilidade incutida em muitas horas de treino, estava plenamente convencida de que o título já não iria fugir ao Napoli.

E dessa vez eu iria estar na festa.

Aqueles Dias de MaravilhaOnde histórias criam vida. Descubra agora