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Uma semana depois, noutra quarta-feira, jogava-se o apuramento para o mundial de Itália, jogos a sério das seleções que, em cada grupo, iriam competir entre si para terem um lugar na competição que realizar-se-ia em 1990. Antes eu estava muito ansiosa com esse campeonato do mundo. Iria acontecer na Europa, num país relativamente próximo de Portugal que me dava a garantia de estar presente sem grandes complicações. No limite podia viajar de autocarro para Itália e usar apenas o bilhete de identidade, porque atravessava países que pertenciam à comunidade económica europeia e havia livre circulação de pessoas e bens. Agora, vacilava no meu entusiasmo. Teria Diego e a sua Argentina, já apurada porque eram os campeões do mundo. Teria a Itália que era uma seleção que eu respeitava muito. Podia ter Portugal como acontecera havia dois anos... mas não teria a minha Bélgica porque Jean-Marie não defenderia a sua baliza.

No mesmo dia que opusera espanhóis e argentinos em Sevilha, a Bélgica jogara outro amigável contra o Brasil e tinha perdido por dois a um. Como guarda-redes titular estava o tal de Preud'homme. Recusara-me a ver o resumo desse jogo que foi mencionado brevemente no bloco sobre jogos internacionais no programa "Domingo Desportivo". Fechei os olhos e só escutei o comentário do jornalista. Preud'homme foi substituído, a poucos minutos do fim, por Bodart que tinha estado no México e que era dolorosamente quase dez anos mais novo do que Jean-Marie. Lembrava-me de forma vaga dele na concentração em Puebla, especialmente quando regressámos da capital após a derrota com a Argentina nas meias-finais. Era tão discreto que nunca o considerei como um guarda-redes, para além de Jean-Marie e de Jacques Munaron. A determinada altura o jornalista elogiou Preud'homme, apelidando-o de grande promessa belga, empregando mais ou menos os mesmos adjetivos de Jean-Marie quando me falara dele. Bufei contrariada, empurrando a almofada que decorava o sofá de encontro ao rosto, pressionando-me os óculos na testa. Odiava o homem e nem sequer o conhecia.

Nesse dia tinham acontecido outros jogos particulares e Portugal também jogou contra a Suécia. Uma exibição fraca e desinspirada segundo os jornalistas que analisavam a prestação da nossa seleção que não fora além de um empate a zero. Pelo menos ainda vira o Caniggia marcar um golo e Diego mostrar timidamente a sua genialidade no relvado do Rámon Sánchez Pizjuán. Tudo fazia prever que Portugal iria fazer uma campanha fraca no apuramento para o mundial e, ainda por cima, partilhava o grupo sete com a Bélgica. Estava perante o dilema de apoiar o meu país ou a Bélgica e recordava-me das palavras sábias e proféticas de Jean-Marie: quando ele não ocupasse a baliza belga, eu nunca mais seria belga. Na presente situação era a mais pura das verdades. A Bélgica começava a ser uma seleção estrangeira para mim, descaracterizada e neutra. E isso doía-me o coração!

A Bélgica jogou a dezanove de outubro o seu primeiro jogo a sério para obter um lugar no mundial italiano contra a Suiça, que derrotou por um a zero com Bodart na baliza. Portugal só entrou em campo a dezasseis de novembro. O seu adversário foi o modesto Luxemburgo e a magra vitória também por um a zero confirmava os piores receios – a seleção das quinas precisava de jogar melhor do que aquilo que mostrara no relvado do Estádio do Bessa se queria repetir a sua presença num campeonato do mundo. Fiquei desiludida com o jogo de Portugal – pobre, raquítico, desligado, banal, aborrecido, tristonho. Não exigia o brilho de uma Argentina conduzida pelo genial Maradona, mas eu pretendia algum espetáculo que me fizesse orgulhar dos jogadores e da equipa, que me fizesse confiar e sobretudo que me fizesse esquecer que Jean-Marie estaria definitivamente ausente.

Nesse dia de novembro a Bélgica voltou a jogar contra a Checoslováquia e não foi além de um empate a zero. A televisão mostrou o resumo do jogo, já que os belgas seriam os próximos adversários de Portugal em fevereiro do próximo ano e eu tentei encontrar Jean-Marie na baliza, negando teimosamente que ele já tivesse deixado a seleção do seu país. Quando apareceu Preud'homme na imagem, a segurar a bola após um remate bem colocado dos checos, um rosto pálido e cadavérico, olhos protuberantes e um cabelo longo encaracolado colado à cabeça, assustei-me e só não comecei a chorar porque o choque me embotou os nervos. A boca soube-me a papelão e convenci-me, por fim, que o meu mundo futebolístico estava estropiado para sempre. Foi também nesse dia que, punho crispado na direção do teto do meu quarto, no escuro, depois de ter desligado a luz para me preparar para dormir, num estilo à Scarlett O'Hara de "E Tudo o Vento Levou" quando determina que jamais passará fome outra vez, jurei que iria dedicar-me a Diego e ao Napoli e à Argentina com toda a minha alma.

Aqueles Dias de MaravilhaOnde histórias criam vida. Descubra agora