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Exigi roupa nova, um penteado diferente, lentes de contacto, uma mudança drástica de visual num pranto desesperado. Era feia e estava farta de ser feia. A minha mãe, ao contrário do que costumava fazer, que era ignorar-me e desvalorizar as minhas pretensões, olhou-me com pena e tentou acalmar-me. Não queria acalmar-me, queria que me dessem as coisas que pedia com um dramatismo pungente a roçar a tragédia. Merecia-as. Tinha completado a escolaridade obrigatória, tinha transitado para o secundário, tivera notas excelentes apesar das minhas viagens clandestinas ao estrangeiro que continuavam a ser do desconhecimento dos meus pais, os professores todos, sem exceção, elogiavam abertamente o meu desempenho.

Ao perceber que não seria convencida com palavras, a minha mãe disse-me que me iria comprar tudo o que quisesse. Estanquei o choro imediatamente. Ela concordou comigo e eu concordei com ela. A sessão de compras ficou marcada para o primeiro fim-de-semana das minhas férias. Quanto às lentes de contacto teria de ficar para julho, porque implicava uma viagem a Lisboa, onde existiam óticas que as comercializavam e médicos especialistas que iriam ensinar-me a usá-las e a conservá-las.

A atitude da minha mãe desconcertou-me, mas não procurei justificações adicionais. As minhas exigências iriam ser satisfeitas, iria finalmente dar um aspeto diferente à nova Cristina que já nutria dentro de mim havia mais de um ano. Precisava de remodelar o invólucro para não me sentir tão asfixiada, confusa e desajustada.

O meu desabafo e descontrolo nasciam da minha frustração do meu último encontro com Diego. Quanto mais pensava naquele sábado, mais me incomodava, mais me entristecia, mais me magoava. Fizera uma viagem enorme, ficara doente com um resfriado nos dias a seguir por causa do frio que apanhara no estádio e nem sequer desfrutara completamente da companhia do argentino. Pensava, voltava a pensar, lembrava e voltava a lembrar, alinhando todos os pormenores por ordem cronológica, desde que desembarcara no aeroporto em Milão até ter voltado a embarcar no mesmo avião, e não conseguia perceber o que tinha acontecido. Ele tinha-me convidado e tinha-me ignorado, tinha-me beijado e tinha-me escorraçado.

Convenci-me de que a sua atitude desligada e até insultuosa se devia ao facto de eu ser feia, de andar malvestida, de ter um aspeto desmazelado. Diego já não gostava de mim e sofri com isso. Precisava de reverter esse estado de coisas. Se por dentro era a Cristina Velez do México havia que mostrá-la ao mundo. E quem era essa Cristina que cativara Diego Maradona?, perguntava-me, intrigada, nariz colado ao espelho, cabelo apanhado a simular um corte mais curto, sem óculos a esconder metade do rosto? No México eu era como me via no reflexo, míope, cabelo comprido, com algum acne a constelar a testa. O que vira ele em mim em 1986 que deixara de ver naquele sábado? O que tinha mudado naquele ano que passara?

Os meus pais não me disseram nada por ter andado desaparecida durante um sábado inteiro, por ter voltado tardíssimo e por ter passado o domingo a dormir. Talvez não se tivessem apercebido de que regressara a casa de madrugada e atribuíram a minha moleza ao resfriado que me começou a atacar na noite e que se prolongou até meio da semana. Felizmente, não tive febre.

Nessa semana tive os últimos testes de disciplinas que considerava fáceis. Mesmo que não me tivessem corrido bem, não iriam alterar a minha nota final, tive a garantia dos professores. Cada vez que espirrava ou que me assoava, irritando cada vez mais a pele sensível e avermelhada à volta das narinas, lembrava-me que aquele tinha sido o preço por ter ido atrás dos convites malucos de Diego Maradona. Acontecera uma taça, certo, mas passara uma fome dos diabos, constipara-me, o argentino dera um espetáculo pobre no relvado e nem sequer compensara com algum momento memorável em privado. A Monique perguntou-me se tinha dormido com o rabo destapado no fim-de-semana e eu respondi-lhe que fazia frio na Lombardia naquela altura do ano. Ela forçou o riso, pois achava que eu estava a fazer uma piada, embora não alcançasse totalmente o seu significado. Desistiu do tema e eu também o deixei cair.

Aqueles Dias de MaravilhaOnde histórias criam vida. Descubra agora