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Era uma situação de perigo. O meu cansaço evaporou-se e fiquei alerta, pronta para me defender. No entanto, não antecipei a rapidez da ação do meu pai. Esperava, quando muito, para abrir as hostilidades, uma discussão, violência verbal, acusações, castigos exemplares, ameaças e exigências, uns abanões, a promessa de uma tareia. Nunca esperei violência física logo no início. Afinal, tinha dezasseis anos, não era propriamente uma criança. Havia que manter uma certa dignidade, minha e dos meus progenitores. Não se batia, pura e simplesmente, em adolescentes, em projetos de adultos, em o que eu fosse naquele momento. Pelos vistos, não era mais do que uma filha desobediente.

O meu pai estava furibundo. E provou-o com uma bofetada que me derrubou. Não pareceu uma bofetada, tive a impressão de que foi um soco. A parte esquerda do meu crânio explodiu, um ardor invadiu-me o olho, lacrimejei, fui com os joelhos ao chão. Ouvi um lamento da minha mãe. Ela também estava na sala, atrás do meu pai, supus. Naquela fase de surpresa, a tentar perceber o que me atingira, não conseguia ver nada. Levei uma segunda bofetada que me apanhou a face em cheio. O meu pescoço voltou-se, um ardor infernal invadiu-me o rosto e solucei de indignação. Eu não merecia aquele tratamento!

O meu braço foi puxado para que saísse do corredor. Sim, nem sequer tinha entrado na sala que brilhava com o clarão medonho do candeeiro que me encandeava. Fui arrastada, a tentar pôr-me de pé com a ajuda da outra mão, a andar sobre os joelhos, a tentar conciliar a dor, a tentar perceber se não tinha cegado do olho esquerdo. Pestanejei várias vezes, aturdida, as lágrimas involuntárias a saltarem-me das pestanas. Fui empurrada para o sofá. Entrevi o meu pai a ensaiar uma terceira bofetada, a minha mãe a segurá-lo, não, já chega, bater nela não vai resolver nada.

A mochila resvalou, então, do ombro direito. O seu peso puxou-me e inclinei-me para esse lado, mole, zonza, incapaz. Podia continuar a ser sovada que já tinha ligado o interruptor da insensibilidade. Não me iria doer mais do que me doía, não iria humilhar-me mais do que já me humilhara.

O meu pai foi fechar a porta da sala para que o meu irmão não acordasse com o rebuliço. Colou-se ao sofá e pôs-se a perguntar, numa voz tensa, baixa e ameaçadora, onde é que eu tinha estado, se eu pensava que eles eram idiotas que não se tinham apercebido das minhas saídas frequentes durante vários dias, se eu julgava sinceramente que as minhas mentiras nunca iriam ser apanhadas. Tentei não desesperar. Mantive-me impassível. Aquele rol de questões não carecia de respostas da minha parte. O meu pai já sabia de tudo. Perguntava e respondia-se a si mesmo, para me manter cativa da sua autoridade paterna que fora logo afirmada com duas bofetadas que me tinham anulado.

Confirmava. Eu estava à sua mercê. E sabendo-me vulnerável, achei por bem não piorar a minha situação e colaborar no inquérito ao estilo da Gestapo. A minha mãe só estava ali para marcar presença, porque tudo o que o meu pai decidisse ela não iria refutar. Tinha evitado uma terceira bofetada e a sua contribuição para a minha salvação terminara por aí.

Estranhando a minha ausência, contava o meu pai à laia de introdução, para que eu soubesse que a minha culpa estava mais do que provada, escusava de inventar justificações que iriam mitigar a minha situação de condenada, ele telefonara para a casa da Mónica. Eu passava sempre os fins-de-semana e os dias esquisitos em que me ausentava na casa da Mónica. Atendera a mãe que dissera que não me vira. Chamaram a Mónica. Ela, no início, tentou explicar que eu estava na casa de uma outra amiga, mas gaguejara e tremera tanto que viram logo que era uma patranha. Apertaram com ela, a Mónica denunciou-me. A Tina viaja. Ela vai viajar no fim-de-semana. Era uma quarta-feira, lembraram-lhe. A Mónica desatara num pranto e admitira que eu tinha faltado às aulas, que não sabia onde é que eu estava, que esperava ver-me no outro dia na escola e que só depois é que lançaria o alerta.

Aqueles Dias de MaravilhaOnde histórias criam vida. Descubra agora