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De volta à segurança mansa do meu quarto senti-me inspirada e, no fim-de-semana depois de ter regressado de Munique, escrevi um conto apocalíptico que se passava numa Terra devastada por uma guerra nuclear. Dei nomes diferentes ao trio de protagonistas, mas no fundo eram eu, Diego e Jean-Marie. Não me conformava com o facto irrevogável de que o belga não se compatibilizava comigo e com o argentino se porventura tivéssemos um convívio mais estreito, durante um estágio para uma minicompetição de futebol, por exemplo. A Bélgica, a Argentina, mais duas seleções e teríamos um torneio de quatro nações, encontros amigáveis, uma taça simbólica no fim, todos a jogar contra todos. Como inventar um torneio desses era uma tarefa pouco desafiante, porque já existiam competições semelhantes, resolvi colocar-nos, eu, Jean-Marie e Diego, num cenário extremo e totalmente inventado.

O conto estava narrado na primeira pessoa, era eu que o contava. No início estava sozinha a tentar sobreviver à recente destruição da minha cidade. Tinha perdido a minha família, os meus amigos, a minha casa, tudo. Meti-me na estrada sem saber muito bem para onde ir e Jean-Marie encontrou-me, salvou-me. Ainda considerei colocar-me com um tornozelo torcido, mas depois era demasiado igual à realidade e achei que ficava esquisito. Jean-Marie estava com outros belgas. Jan, Nico, Enzo e Stéphane. Fugíamos todos para um lugar onde a terra, a água e o ar não estivessem contaminados, onde fosse possível recomeçar o mundo, longe da loucura dos ambiciosos que tinham desencadeado a guerra. Pelo caminho havia combates, perigos e desafios.

Mais à frente, encontrámos Diego ferido. Cuidei dele até que se sentisse com força para nos acompanhar na jornada. Gostava desses momentos dramáticos, desses extremos que me apertavam o coração na história e na vida real. Diego eventualmente curou-se, Jean-Marie sentia ciúmes por ele e eu nos termos tornado próximos, mas a doença tinha-nos aproximado. Mais à frente encontrámos amigos de Diego. Nery Pumpido, Jorge Burruchaga, Ricardo Giusti e Julio Olarticoechea.

Depois de um jantar quiseram divertir-se. Estávamos perto de um estádio em ruínas e começaram a jogar futebol. Cinco contra cinco. Encontrou-se uma bola num armário que guardava também equipamentos de futebol. Eu fazia de público e puxava pelas duas equipas, dos belgas e dos argentinos. Na minha história não tínhamos as nossas nacionalidades habituais, nem eu tinha definido uma nacionalidade, aliás. Todos falavam a mesma língua e vinham do mesmo país que era também o meu.

O jogo de futebol recuperou uma parte das coisas bonitas que o mundo tinha antes da guerra. Estávamos a rir e a brincar, mas, de repente, aconteceu um ataque. Jean-Marie acabou mortalmente ferido e eu chorei muito. Tive de o abandonar. Diego tentou consolar-me, mas eu estava inconsolável. Do nosso grupo só sobravam quatro pessoas, comigo éramos cinco. Um belga, escolhi o Enzo, e três argentinos, o Nery e o Jorge para além de Diego.

A nossa vida tornou-se amarga e triste, perdemos a esperança. Diego passou a liderar-nos. O seu ferimento de antes incomodava-o, ele queixava-se muito e sabíamos que o nosso grupo estava condenado ao fracasso. Nunca iríamos conseguir chegar à terra prometida.

No fim, aconteceu um novo ataque. Eu e Diego separámo-nos dos outros e fomos refugiar-nos noutro estádio de futebol destruído. Ele acabou por falecer nos meus braços enquanto eu lhe falava sobre um glorioso domingo de jogo, com as bancadas vestidas de bandeiras, de faixas e de alegria, a falar-lhe do perfume da relva, da sensação única de se marcar um golo.

Quando terminei o conto chorava um rio de lágrimas, porque ficara incrivelmente triste. Não era essa a minha intenção inicial, mas agora que concluía naquele registo melancólico, achava perfeito. A morte dos protagonistas era uma metáfora para o fim das suas carreiras de futebolistas. Tínhamos estado todos juntos, eles jogaram uns contra os outros como aconteceu no mundial, alguns iam-nos deixando pelo caminho, ficavam as boas recordações.

Aqueles Dias de MaravilhaOnde histórias criam vida. Descubra agora