Me encontrava de joelhos outra vez diante dele.
A conexão que tínhamos havia se perdido, anulada com o passar dos anos em que eu não mais me movia mediante todas as suas regras. Era impossível visualizar meu futuro sem colocar em questão todos os ensinamentos que me foram passados a seu respeito.
Deus não conversava comigo há muito tempo, e olhando para o meu passado, através de novos olhos, acho que ele nunca conversou. Tudo o que eu tinha eram suposições a seu respeito, histórias sobre como tudo se podia quando se acreditava, histórias que hoje vejo como mentiras usadas para controlar aqueles que temem, aqueles que agem de acordo com dogmas impostos por uma sociedade que não aceita ser contrariada quando se usa o nome de Deus como o todo e único salvador.
Me sinto horrível por não ter mais aquela conexão especial, mesmo ela sendo uma fantasia de minha parte, enraizada em minha mente. Me sinto imponente e perdido, sem um propósito maior.
Depois que saí da cadeia, as coisas do lado de fora se tornaram diferentes. Eu não podia mais continuar com meus pensamentos, com meus ensinamentos antigos. Eu tinha uma nova vida, uma nova meta a ser cumprida e novos desafios a serem realizados, desafios que ainda não consegui cumprir.
Passar por cima de tudo foi difícil. Meu processo de aceitação foi longo, mas ele veio, e quando chegou, me arrebatou com sentimentos que estavam escondidos dentro de mim. A aceitação me trouxe presentes, sensações novas, mas também me trouxe percas. Eu não mais me encaixava na igreja por causa dela, perdi o meu propósito como pastor, perdi o dom da palavra, mas ganhei meus filhos, ganhei uma família incrível, uma família que me acolheu, que me amou e que ainda me ama, assim como os amo, mas perdi a igreja, e acho que no fundo, apesar de me sentir desprezado, meus filhos superaram todo e qualquer questionamento que eu possa vir a ter a respeito dos meus conflitos religiosos, que só se fazem aumentar a cada dia que passa.
Oito meses após sair da cadeia, quando descobri que minha antiga esposa e mãe dos meus filhos havia sido assassinada na prisão, achei que iria me perder, que seria arrebatado com uma comoção tão grande que me faria voltar para os braços do Senhor, mas não foi o que aconteceu. Quando vi no rosto do meu filho mais velho o alívio e a certeza de que agora eles estariam em paz para sempre, tudo o que consegui fazer foi me esconder no banheiro e chorar, lamentar por eu ter chegado tarde demais, por ter ignorado todos os sinais em minha volta e deixar com que ele fosse usado como instrumento de batalha, batalha essa que culminou no nosso distanciamento. Asafe foi ferido, eu acreditei em quem não deveria, e no fim, fui punido por isso, e até hoje tenho dificuldades de lhe encarar, sabendo tudo o que aconteceu a ele, sabendo que eu não fui homem o suficiente, que eu não fui pai o suficiente para lhe estender a mão, e ter ciência disso é um dos motivos que me faz chorar a noite, em meus momentos de confusão espiritual.
O começo da convivência foi difícil. Aos poucos eu percebia que o fato de eu não ter sido um pai presente fez com que Asafe assumisse uma postura um tanto quanto diferente do que eu imaginava. Nunca achei que meu filho, que sempre subestimei durante toda a sua vida, se tornasse um homem tão incrível. Asafe era uma força da natureza, como Leonardo me disse uma vez. Ele carregava uma dualidade impecável que faria qualquer ser humano se sentir invejado. Ele era um pai para Gael e Isaque, um homem respeitoso e fiel a família, sempre com um sorriso no rosto, mas também era uma potência assombrosa que carregava no olhar um martírio, um ódio por tudo o que vinha acontecendo ultimamente em nosso país, e ele tentava esconder isso dentro de casa, de seus filhos e de mim, mas eu sabia o que ele fazia durante as noites, quando explodia uma notícia de mais um assassinato dos seus, eu sabia o que ele fazia, e isso cortou o meu coração.
Reparei seus punhos vermelhos algumas vezes durante nossos breves encontros antes de nossos respectivos trabalhos. Notei Leonardo silencioso diante dele, momentos em que sabíamos que nada se poderia dizer. Sei também que meu genro o acompanhava na maioria das vezes, eu os via saindo a noite, de carro, rumo ao perigo, mas eu não podia fazer nada, nunca fui pai o suficiente de nenhum dos dois para os impedir de alguma coisa, então tudo o que eu podia fazer era rezar para que eles voltassem bem para casa, e eles sempre voltavam, e no segundo em que eu batia os olhos em meu filho após as suas idas a rua, eu sabia que um peso havia sido tirado de seus ombros, mas sabia também que era momentâneo, até a próxima semana, quando outro caso eclodia e a impunidade ainda insistia em existir.
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Conflitos Interpessoais
RomanceLeonardo teve tudo o que queria sendo braço direito de quem comandava a favela, mas a doença de sua mãe o trouxe de volta a realidade, lhe obrigando a iniciar uma nova vida. O racismo se torna constante logo nos primeiros dias, e lidar com essa ques...