Era uma quinta-feira sem nada novo no horizonte quando o interfone soou como um alarme de carro, irritantemente mais longo do que o usual, e Rui disse, lá debaixo:
— Donalice! Chegou encomenda pra senho... quer dizer, pra você, aqui embaixo. Precisa assinar. Posso assinar?
— Pode sim, Rui.
Foram doces os segundos de pura inocência em que não me lembrava o que tinha encomendado, pois não estava nem entrando na int...
Senti a realidade me dando uma facada pelas costas. Ela estava ali, fazendo uma visitinha, e trouxe com ela um sapato. Caro. Caríssimo.
Senti várias vergonhas ao mesmo tempo, e a maior delas era não ter mais uma ocasião para usá-lo. Que pena. É realmente uma pena quando a gente se envergonha só para si. Esse sentimento traz uma tonelada de outros arrependimentos.
— Já vou descer – disse, mas o que realmente queria ter dito era "pode ficar pra você, Rui, presenteie uma mulher legal na sua vida com esse sapato no valor de cinco salários mínimos".
Um dos dias mais felizes da minha infância foi quando saí de casa e vi uma barraquinha de alumínio sendo pintada do outro lado da rua. Uma banca! Uma banca na porta da minha casa! Quando ela finalmente abriu, comprei três revistas. Li todas em uma tarde. No outro dia me rendi a outra revista, que devorei rapidamente, seguida de mais uma, e mais uma, e mais uma. Minhas opções começaram a ficar escassas. Ainda na primeira semana me vi comprando revistas semanais de adultos, daquelas com notícias chatas, mas corria para a parte de cultura, ciências, receitas. Horóscopo. No fim do primeiro mês de banca na frente de casa eu já tinha comprado de revista em quadrinhos a fascículos que ensinavam a fazer roupas de crochê. Seu Celton, o jornaleiro, era só felicidade com o faturamento que eu proporcionava.
Revistas sempre foram meu ponto fraco. Nunca tive paciência para ler online; sou a figura da resistência do jornalismo impresso. Não há nada como pegar uma revista, folhear, ler, cheirar... pode parecer maluquice, e talvez seja, mas revistas me acalmam em situações adversas.
Ao entrar em aviões, por exemplo, fico bem menos tensa quando encontro uma revista no bolsão à minha frente. O ritual é sempre o mesmo: já entro espiando se tem revista. Se tiver, fico feliz. Coloco a bagagem de mão no compartimento, sento, afivelo o cinto, abro a revista em qualquer página, cheiro com os olhos fechados, interiorizando a essência da celulose, e, logo depois, vejo quem está na capa e quais são as manchetes. Vou lendo tudinho, desde a primeira página à última, se bobear em português e em inglês, já que revistas de avião costumam ser bilíngues. Tudo para diminuir a sensação de impotência que sinto dentro das latas de aço. Se você também tem pavor de perder o controle, sabe do que estou falando. Sempre tentei ter controle de tudo: meu peso, meu conhecimento, minhas relações de trabalho, de amizade, meu dinheiro e minha saúde. Ironia do destino: como não se pode ter tudo na vida, controlar meu futuro casamento foi um grande fracasso de público e crítica.
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Teoria do Amor
RomanceLembra das aulas de física que te faziam pensar a razão pela qual era preciso saber o que aconteceria a um bloco de três quilos se você o empurrasse de uma altura de quinze metros a uma velocidade de seis quilômetros por hora - bem como a aplicação...