Capítulo 65

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No breu, escuto a voz de alguém que sussurra "posso me sentar?". Não consigo enxergar quem pede permissão, nem a estrada lá fora. Desnorteada e sonolenta, digo que "sim, você pode se sentar" para quem quer que seja, e meu novo colega de viagem faz o que digo, ocupando a poltrona ao lado.

— Já chegamos? – pergunto.

Com a cabeça encostada na janela, volto a fechar os olhos.

— Onde?

— Paris.

— Não.

— Ainda estamos na Inglaterra?

— Também não.

— Onde, então?

— Não faço ideia.

Eu só quero dormir, mas a resposta me deixa inquieta. A confusão parece irresistível demais para ser deixada de lado. Como assim, "não faz ideia"? Ele, literalmente, acabou de entrar no ônibus. Abro os olhos com desconfiança, só para olhá-lo com o mínimo de atenção que consigo dispensar nas condições em que me encontro. Ele deve ter mais ou menos minha idade e não parece ser maluco, julgamento que me dá coragem para confrontá-lo em sua falta de lógica. Talvez seja o sono, o cansaço ou o excesso de lendas urbanas traumáticas ouvidas por todos esses anos, mas analiso com calma a opção de falar algo que gere longas conversas e concluo ser melhor não me engajar em detalhes da vida do sujeito. Minha mãe me ensinou a não falar com estranhos, sugestão que acredito se aplicar a adultas dentro de ônibus escuros em países distantes, vagando onde quer que eu esteja. Da última vez que chequei, "dar bobeira" é um dos argumentos mais consistentes para os filmes de terror.

— Isso não faz sentido. Você acabou de entrar. Precisamos estar em algum lugar.

— Será mesmo?

Algo nesse homem me incomoda, e não estou certa de ser apenas a mania de me responder com perguntas. Tentando enxergá-lo na escuridão, procuro na memória algo que possa ser dito para encerrar a questão de modo definitivo. A primeira opção que me vem à mente, e a mais simples de todas, é não falar nada. Deixar quieto. Mas, ainda que meu cérebro defina os termos dessa condição, minha boca continua trabalhando, como se fosse uma parte independente de mim.

— Não podemos estar em dois lugares ao mesmo tempo, mas precisamos estar em pelo menos um lugar.

— Quem disse isso?

— A lei.

— Que lei?

Agora estou irritada, além de levemente incrédula. Eu não o conheço, ele não me conhece, estamos no meio do nada, o breu nos engolindo por todos os lados e ele quer mesmo ir por esse caminho? E eu que achava que, na Europa, alguém dormindo no ônibus, no meio da madrugada, significa que a pessoa quer continuar dormindo até chegar ao seu destino... parece que me enganei.

Me endireito na poltrona e, lutando em prol do raciocínio indicado de parar de falar com um estranho e voltar a dormir, acabo me causando o efeito inverso – e, pela completa falta de polidez, ele pode sentir minha indignação. Em outro momento talvez explicasse, com gosto e boa vontade, a lei que corrobora o que digo, mas não aqui, e não agora. Minha falta de paciência emerge principalmente quando estou bêbada de sono ou com fome. Essas são as duas únicas condições que carregam em si a possibilidade de me fazer perder as estribeiras com força. Você pode falar mal da minha família, amigos ou cachorro, você pode roubar minha casa, rebaixar meu time ou me fazer de boba em esquemas que me deixarão sem dinheiro, você pode até me abandonar um mês antes do casamento, veja só, que, de um jeito ou de outro, eu conseguirei processar a informação e até te perdoar pelos rompantes, mas não me faça perguntas idiotas ou solte comentários estúpidos quando eu estiver com sono ou fome, a menos que queira liberar o monstro.

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