Capítulo 5

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Pouco depois que o projeto de exército da salvação saiu da minha sala tive comichões de fazer coisas que há muito não fazia. Coisas simples. Ir à padaria, farmácia ou ao ponto de táxi e pagar por uma corrida pelo quarteirão só para conversar com alguém diferente. Fiquei tanto tempo em silêncio que, depois da breve experiência social do dia, queria mais. Coloquei um roupão por cima do pijama, me olhei no espelho, ajeitei o cabelo para cima e me senti pronta para encarar o mundo outra vez.

Antes de alcançar a porta, senti um calor enorme. Verão brasileiro, sabe como é. O roupão, típico de uma rica excêntrica, só que, no meu caso, mais excêntrica do que rica, era opcional, mas o pijama era velho de doer, esburacado e estava até meio fedido. Acabei trocando tudo, sem muito capricho. Optei por um short que podia se passar por uma cueca divertida, uma blusa com a estampa de um Einstein musculoso que dizia "nossa, que físico!" – presente de fim de ano do último terceirão – e um chinelo que mostrava unhas grandes demais para serem consideradas higiênicas. Não consegui lidar. Peguei o cortador na primeira gaveta do armário do banheiro e aproveitei que já estava por ali para dar um jeito nas unhas das mãos. Quando terminei, percebi que meu cabelo estava horrível, mas teria que resolver isso depois. Já passava das quatro da tarde e comecei a desconfiar que eram só desculpas para não sair de casa.

Catei as chaves em um impulso, entrei no elevador e apreciei a sorte de estar sozinha lá dentro, em um raro momento de total privacidade. Quando as portas se abriram no térreo, Rui, o porteiro, me encarou como alguém que acaba de ver um fantasma.

— Alice! Que bom ver a senhora por aqui. Já era hora!

— Você, Rui. Você.

— Que bom ver você! – se corrigiu, dando um tapinha na própria testa. — Achei que tinha até se mudado!

Rui tentava quebrar o gelo com muita eficiência, mas não tive resposta a dar. Apenas sorri e balancei a cabeça em negativa. Ele me contou duas ou três coisas sobre sua família, que conheço de vista, antes de me desejar um bom passeio. Esqueci de dizer "obrigada" porque, antes que a educação se manifestasse, uma pergunta se fez urgente:

— Rui, chegou encomenda pra mim?

— Não, senhora. Digo, senh... não. Tá esperando alguma coisa? Ouvi dizer que o correio tá de greve! Deve ser por isso.

Aprecio imensamente pessoas como Rui, o porteiro, que fazem perguntas, tiram conclusões e explicam a situação sem que precisemos abrir a boca. E não estou sendo irônica: eu gosto mesmo dessa gente que facilita a vida de quem está com pressa e não pode se dar ao luxo de estender conversas.

— Chegando eu te aviso! – e acenou um tchau enquanto eu agradecia, finalmente, e colocava, pela primeira vez em dias, o pé na rua.

Ela continuava a mesma. Normal. Nada mudou no mundo enquanto meu mundo mudava. Filosófico, né? Parece até bonito, mas é bem melancólico encarar a realidade. No auge de qualquer tristeza é bom ter a ilusão de que tudo ficou triste e sem vida junto com a gente, que não sobrou pedra sobre pedra da porta para fora. Mas, aparentemente, não foi o caso. Nunca é. Avistei a padaria, a farmácia, a banca de jornais e o ponto de táxi lotado. Apesar de toda a tecnologia que faz com que eles possam desaparecer a qualquer momento, os carros brancos ainda resistem por aqui, em um gesto de rebeldia contra o sistema futurista.

Do outro lado da rua avistei o Bar Irlandês. Estava com a porta entreaberta e a movimentação típica de recebimento de estoque. Sei disso porque o gerente me contou que existe esse tipo de coisa, em um dia em que eu quis entrar no bar, mas ele estava fechado.

— Não está fechado, a porta está aberta – eu disse, pontuando o óbvio.

— Apenas para recebimento de estoque.

Teoria do AmorOnde histórias criam vida. Descubra agora