Capítulo X

100 12 1
                                    


 Ainda estava surpreso, não esperava que ela fosse me responder, mas tentei ao máximo fingir naturalidade.

 Cruzei os braços e virei meu corpo completamente em sua direção. Mesmo não alterando a distância entre nós dois, minha postura deu a entender que minha atenção estava inteiramente voltada para ela.

— E por que te chamam de Ana?

 Ela sorriu levemente, mas não por felicidade e sim por cinismo.

— É isso que vocês fazem, não? - voltou seu olhar para a égua - Tiram tudo de nós, até nosso próprio nome.

Valente. Corajosa.

 Ayla possuía um sotaque carregado, mas era muito diferente do meu. Seu português é entendível, mas o sotaque faz com que a pronúncia das palavras saia bem diferente.

— Não me incluo nisso!

— Por que me comprou então? - perguntou me olhando novamente.

— Essa é uma pergunta pela qual ainda busco resposta. - fui sincero e ela encerrou a discussão - Preciso cuidar de suas costas, os ferimentos vão se fechar mais rápido assim!

 Por mais que estivesse usando seus machucados como meio para me aproximar, eu não menti. Quanto mais vezes aquela coisa da planta for passada em suas costas, mais rápido ela vai se curar.

 Ayla me olhou uma vez antes de virar de costas, dando a entender que eu poderia chegar mais perto.

 Outra vez peguei minha faca e a planta, andei em direção à moça em passos rápidos, mas não muito fortes. Quando estava perto o suficiente, retirei a parte branca da folha como fiz mais cedo e passei pelos cortes em suas costas.

 Enquanto minhas mãos estavam ocupadas, meus olhos analisaram algo que eu não havia reparado. Ayla é bem alta se comparada às outras mulheres.

 Sou o mais alto da minha tripulação, tenho um pouco de dificuldade para achar outros homens maiores que eu, e mesmo assim o alto da cabeça de Ayla está poucos centímetros acima do meu ombro.

 Não demorei para terminar o que havia começado, logo em seguida me afastei dela indo em direção à baia que ela estava deitada.

— Comeu bastante, em?! - falei ao pegar um dos pedaços de pão que havia comprado mais cedo - Devia estar com bastante fome.

— Conhece bem pouco sobre castigos aplicados aos escravos, não é? - perguntou quando me sentei no chão.

 Ela ficou parada na entrada da baia, escorada na madeira, pelo visto não estava disposta a diminuir o espaço físico entre nós dois.

— Não é um assunto que eu gostaria de estudar. - olhei em seus olhos - Por que a pergunta?

— Não reconheceu minha marca de fugitiva! - franzi o cenho.

— "Marca de fugitiva"?

—Essa aqui. - ela virou o rosto e pude ver uma queimadura não muito grande em sua bochecha esquerda.

— Como fizeram isso?

— Ferro quente. - parei de mastigar por alguns instantes por imaginar a dor.

— Sinto muito.

 Ayla encarou o fundo dos meus olhos por um longo período, parecia me analisar.

— Quem é você? - perguntou curiosa.

— É uma informação relevante?

— Mais do que imagina! - se sentou - Passei anos nas mãos de donos de escravos e nenhum deles fez 1% do que você fez.

— Como, por exemplo?

— Me deixar sozinha durante horas dentro de um celeiro com as trancas abertas sem colocar as correntes de volta em meu corpo. Ou até mesmo me alimentar com algo diferente de feijão e cuidar das minhas feridas. - continuei lhe encarando - Você finge muito bem.

— Fingir? Eu não posso simplesmente ser uma boa pessoa?

— Brancos não são boas pessoas!

— Você fala como se já tivesse conhecido todas as pessoas brancas desse mundo.

— Conheci muitas delas e não me agradei do que vi!

 Sua conduta parecia irredutível. Ayla não estava nenhum pouco disposta a mudar de opinião.

— Não lhe julgo. Se eu tivesse passado pela metade das coisas que passou nos últimos anos também não confiaria em nenhum outro branco que cruzasse meu caminho.

— Que bom que sabe, assim não preciso dizer que confiança não será um sentimento mútuo entre nós dois.

— Se não confia em mim, por que não foi embora?

— Não chegaria muito longe se tivesse cruzado aquela porta. Estou machucada e ter um dono é a garantia de que nenhum outro fazendeiro encostará em mim!

— E por que me deixou encostar em você?

— Meu corpo precisava de cuidados, a febre não me deixaria passar daquela noite.

— De onde venho chamam isso de interesse.

— São raras as vezes que brancos oferecem ajuda aos negros sem interesse por trás, apenas de "bom grado". Arrisco dizer que isso nunca aconteceu.

— Eu não pedi nada em troca de você!

— Ainda. - falou com certeza.

 Reconheço a desconfiança de Ayla, até porque ela tem incontáveis motivos, mas não consegui disfarçar meu incômodo com sua última fala.

— Não é justo que me coloque nessa posição. Você não me conhece!

— E é justo que me veja como um animal?

— Não te vejo dessa forma!

— Então por que me comprou como se eu fosse um?

 Seus argumentos eram fortes, não tive chance de resposta.

 — Agora entendi porque castigaram tanto você. Suas palavras são duras, mesmo transparecendo a realidade, nenhum branco se agradaria de ouvir isso!

— Vai me castigar também?

— Já disse que não me incluo nisso.

— Não acredito em você!

 Olhei em seus olhos uma última vez antes de encerrar a discussão, apenas me levantei e saí da baia.

— Comprei algo para você!

— Pra mim?

— Uhum. - fui até minha bolsa e peguei as peças que havia comprado mais cedo.

 Voltei para a baia e deixei as peças em suas mãos. Demorou um pouco para que ela pegasse as roupas, Ayla até me encarou por um tempo antes de estender os braços.

— Não acho que se sentiria confortável em usar apenas uma camisa rasgada por aí. - ela analisou as peças com atenção por um bom tempo - Também preciso te contar uma coisa. - me encarou - Mas minha intuição diz que você não será muito favorável à minha decisão. 


*Relevem os erros, por favor.*

Finalmente, o primeiro diálogo dos nossos pombinhos saiu. 

ALFORRIAOnde histórias criam vida. Descubra agora