Capítulo XXIII

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 Enquanto estávamos trabalhando, olhei para o lado e vi John passar ao lado da plantação acompanhado pela tal Violet. Só não consegui entender o motivo disso ter prendido tanto minha atenção.

— Algum problema, criola? - um dos feitores disse ao meu lado e eu neguei com a cabeça depois de um tempo - Então volte ao trabalho!

 O homem se afastou em passos lentos e continuei olhando para John mesmo depois de voltar ao trabalho.

— Te entendo, Ayla. - Berenice disse ao meu lado - O Sr.Carter rouba atenção e arranca suspiros das escravas sempre que vem aqui!

— Ele faz muitas visitas?

— Vinha mais quando ele e a Srta.Violet tinham compromisso firmado. - franzi o cenho.

— "Compromisso firmado?"

— Os dois estavam noivos, mas o Sr.Jones cancelou o casamento poucas semanas antes da cerimônia. - ela se aproximou um pouco mais - Dizem que ela estava até esperando um filho dele. - sussurrou.

 Noivado? Gravidez?

 Eram informações demais, minha cabeça estava confusa.

— EVA! - Berenice gritou.

 Me virei para a direção que todos estavam olhando e vi uma garotinha caída no chão com o saco de algodão tombado ao seu lado. Ela se sentou e começou a reclamar de dor, mas ninguém fez nada para ajudá-la.

 Fiquei com dó e, por impulso, coloquei meu saco de algodão nas costas para ir ao seu encontro, mas acelerei os passos ao ver que William também estava indo em sua direção.

 Quando estava perto o suficiente, me abaixei para ficar na altura de seu rosto.

— Machucou?

— Meu pé tá doendo muito! - disse com a voz chorosa.

— O que tá havendo aqui? - Willian perguntou impaciente - Por que não estão trabalhando?

— Eu caí. - falou levantando o olhar cheio de lágrimas.

— Pois, levante e volte ao trabalho. - respirei fundo tentando controlar a raiva.

 Ofereci meu braço para ela se apoiar e, quando a menina tentou se erguer, ela caiu outra vez.

— Meu pé tá doendo muito.

— Você sabe o que faço com negros preguiçosos, Eva. - encarei os olhos dele - Então é bom se levantar!

— Eu não consigo, me desculpe. - soluçou pelo medo.

Como alguém pode ser tão desprezível a esse nível? Ela é só uma criança!

— Eu faço o trabalho dela! - me pronunciei.

— E quem vai fazer o seu trabalho?

— Eu mesma. Consigo trabalhar muito mais que qualquer outro negro dessa fazenda.

— Está mentindo!

— Pois então, veja. - apontei - Já enchi dois sacos de algodão enquanto os outros ainda não finalizaram o primeiro. - ele olhou - Eu faço o trabalho dela!

 A raiva de William era explícita, mas ele não se deu ao trabalho de questionar, ou simplesmente não achou argumentos cabíveis para a situação.

— Espero que esta seja a primeira e última vez, Eva. Não atrase mais os outros, ou vai pro tronco!

— Sim, senhor. - respondeu com a voz embargada.

 William se retirou mandando todos voltarem ao trabalho, aproveitei sua distração para pegar a menina no colo. Quando tirei seu corpo do chão, percebi John parado a alguns metros me encarando.

 Naquele momento só consegui sentir raiva por ele ver uma criança naquela situação e não fazer nada pra ajudar, então me apressei ao andar.

 De todos os lugares destinados a escravos em uma fazenda, a senzala é a que mais me incomoda. É indescritível a tristeza de passar noites dentro daquele lugar ouvindo o balançar das correntes, parece que até mesmo nossa respiração fica mais carregada.

— Onde você dorme? - perguntei ao entrarmos.

— Ali. - apontou.

 Tive que desviar de alguns negros acorrentados até chegar perto de uma das paredes do lugar. Coloquei seu corpo no chão frio, já que não havia nada para colocar embaixo dele.

— Onde tá doendo? - perguntei e ela apontou - É só um corte, nada muito sério. - olhei em seus olhos - Vou pegar algo para ajudar a cicatrizar, já volto. Fique quietinha.

 Saí da senzala em passos largos com cuidado para não ser percebida por William ou algum outro feitor.

 Cheguei a uma parte menos movimentada da fazenda, onde não havia ninguém transitando.

 Se me pegarem aqui, tô ferrada.

 Reparando o local com atenção vi uma planta que John costumava usar em machucados ou cortes pequenos e decidi colher, mas quando me abaixei, escutei o som dos trotes de um cavalo vindo em minha direção.

 Merda!

 No lugar que estava eu não conseguia me esconder, muito menos passar despercebida, então apenas continuei parada esperando a bomba vir.

— O que faz aqui? - franzi o cenho e me virei - Sabe que existe limites para até onde os escravos podem ir, não sabe?!

— Sei. - peguei alguns galhos da planta com pressa - Já estou voltando para o trabalho, Sr.Carter.

— Não quero que me chame de "senhor", Ayla. - voltei a andar em direção às plantações, ignorando completamente seu pedido - Ainda não respondeu minha pergunta.

— Viu o que aconteceu e, diferente do senhor, eu estou ajudando uma garotinha machucada. - ele veio atrás de mim.

— O que queria que eu fizesse? - parou o cavalo em minha frente, bloqueando a passagem - A fazenda não é minha. Não posso interferir no trabalho dos escravos, muito menos na forma como são educados.

— "Educados"? - perguntei perplexa - Acha certo que uma criança fique o dia todo no sol colhendo quase 100 quilos de algodão sem tempo para descanso e, quando se machuca, seja obrigada a continuar trabalhando?

— É óbvio que não, mas já expliquei que não tenho voz aqui!

— Sou uma escrava. Não tenho voz em lugar nenhum e mesmo assim nunca me calei ao ver o que é injusto.

— Ayla...

— Preciso voltar ao trabalho! - contornei o cavalo para continuar andando.

 Mesmo de costas, percebi que ele havia descido do cavalo e estava vindo em minha direção, por isso não me assustei tanto quando senti sua mão puxar meu braço.

— Pare de me tratar assim.

— Parar de tratar assim? - livrei meu braço de seu toque - Você me deixou sozinha mais vezes do que consigo contar, me trouxe pra uma cidade que mal suporta a existência dos negros, me fez voltar a trabalhar em uma fazenda embaixo desse sol infernal e, ainda por cima, permaneceu calado ao ver uma criança passar por aquela situação. - dei um passo em sua direção - Eu nem sei quem diabos é você!

— Eu? - perguntou sorrindo cinicamente e, no mesmo instante, meu corpo foi pressionado contra uma árvore - Eu sou um navegante tolo que se apaixonou por uma escrava petulante que vem bagunçando minha mente a ponto de eu não conseguir tomar uma mísera decisão sem parecer um completo imbecil. - pisquei várias vezes pela surpresa - Você é a maldita culpa por eu estar fazendo tudo errado, Ayla!  




*Relevem os erros, por favor.*

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