Capítulo IV

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O caminho até o cartório foi regado de olhares duvidosos à nossa volta, já que eu estava andando quase ao lado dela e não em cima de um cavalo puxando suas correntes como um animal.

— Já volto, não irei demorar! - falei ao chegarmos em nosso destino.

Deixei a mulher do lado de fora do local e me apressei em entrar no cartório.

— Em que posso ajudar?

Um homem atrás do balcão disse.

— Preciso validar alguns documentos recentes feitos em outro território, também quero pegar uma encomenda deixada por um homem bem vestido a algumas horas atrás!

— Seu nome, por favor.

— John Carper!

— Os documentos estão aqui?

— Sim. - tirei os papéis do bolso do meu casaco e lhe entreguei.

— Só um instante.

O homem foi até a parte interna do Cartório e eu fiquei esperando em frente ao balcão.
Em meio a calmaria, minha mente se permitiu vagar pela beleza da negra que acabei de comprar. Os olhos marcantes, os lábios convidativos, o corpo magnífico...

Em um momento súbito, olhei pela janela e vi ela do lado de fora. Distraída e com cara de poucos amigos, ela olhava o movimento das pessoas passando pela rua.

A Ana não é como os outros escravos.

Ela não olha para o chão na presença dos outros, nem tem medo de encarar os olhos dos brancos. Até mesmo sua postura deixa explícita sua coragem!

— Aqui Sr.Carper, seus documentos. - me virei rapidamente - E sua encomenda.

— Muito obrigada! - sorri sem mostrar os dentes - Sabe me informar se existe alguma pousada por aqui? Para passar a noite?

— Tem uma na rua de cima, é confortável e barata, mas acredito que não conseguirá se hospedar lá!

Virei o rosto e encarei seus olhos.

  — E por que não?

— Por causa da criola!

Pensei em revidar, mas achei melhor poupar meus argumentos para outra situação. Não adiantaria nada iniciar uma discussão sobre meu repúdio à escravidão, pelo menos não aqui, não estando no Brasil!

— E você pode me indicar um lugar onde ela possa ficar?

— Na sua ausência, em lugar nenhum. Mas na sua presença, talvez um celeiro!

— Celeiro?

— Se a negrinha estiver contigo, esse é o melhor lugar que vai conseguir!

Respirei fundo e me afastei do balcão.

— Obrigada e até logo. - falei saindo de perto.

Peguei os documentos, coloquei-os dentro do meu casaco outra vez, passei o braço pela caixa da encomenda e voltei para o lado de fora do cartório. 

Me impressionei com a platéia de homens em volta da Ana.

Ela permaneceu quieta enquanto os senhores balbuciavam ofensas gratuitas contra ela, ao mesmo tempo que expressavam sua luxúria através dos olhos.

É contraditório como fazendeiros, cujo sentimento pelos negros se limita a nojo, desejam as escravas mais que suas próprias esposas!

Me aproximei calmamente até ficar ao lado dela.

— Posso saber o que está acontecendo aqui, senhores?

— Você é o dono dela? - assenti - Quanto quer pela escrava?

— Sinto muito decepcioná-lo, mas ela não está à venda!

— Diga-me por quanto a comprou, eu pago o dobro! - um outro disse.

— Eu pago o triplo!

Iniciou-se uma gritaria ensurdecedora, parecendo que havia começado outro leilão.

— Cavalheiros, sem tumulto. - falei pegando as correntes - Já disse, a Ana não está à venda!

— "A Ana" ? - um homem mais velho disse - Que tipo de senhor é você? Por que chama essa criola pelo nome? - minha expressão mudou -  Fale com ela direito.

— Como disse anteriormente,  eu sou o dono dela e sou eu quem decido como devo chamá-la!

— Não dê tanta liberdade a esses pretos, senhor. - respirei fundo ao ouvir outro homem dizer - Eles são como cavalos, precisa manter as rédeas apertadas se não quiser que te joguem no chão, tanto que alguns precisam ser açoitados de vez em quando.

— Suas palavras seriam sábias se estivéssemos realmente falando de uma égua arisca, senhor. O problema é que estamos falando de uma pessoa!

Assim que terminei a frase, Ana olhou em meus olhos com uma feição de dúvida. Ela me analisou por curtos instantes enquanto o interior de meu corpo tremia pela firmeza de seus olhos.

Os homens começaram a rir, mas nem isso fez com que eu parasse de olhá-la.

— Vai me dizer que está gostando da criola?

— Talvez. - respondi fazendo todos se calarem em surpresa - E pela forma que está olhando para ela, sinto muito lhe informar meu caro senhor, mas nossos sentimentos para com a dama ao meu lado não são diferentes.

Não consegui decifrar se eles estavam com dúvida ou com raiva pelo que eu havia acabado de dizer.

— O que disse?

— Creio que não há necessidade de repetir. - dei o primeiro passo fazendo um aceno em meu chapéu - Um bom dia a todos, cavalheiros.

Senti a mão do homem em meu ombro, logo em seguida vi seu corpo bloquear minha passagem e levantei um pouco a cabeça para encarar seus olhos.

— Mas, agora eu quero saber se você tem coragem de repetir olhando em meus olhos, garoto!

— Eu não faria isso se fosse o senhor.

— E por que não?

*Relevem os erros, por favor.*🥺

Sr.Carper chegou causando tumulto, meus amigos.

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