Trinta e Três - Eu não sei se isso é certo

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*------------ quadro de avisos ------------*

Eu amo a naturalidade que vocês estão levando o assunto Daniel. Não são muitos que aceitam que trans podem se identificar desde criancinhas e que isso deva ser levado a sério, não como algo de criança que são muito novas para qualquer coisa.

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Lauren

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As crianças sempre estavam correndo para lá e para cá, tanto porque são crianças, quanto porque nossos filhos são loucos.

- Está bem, quero todo mundo parado agora! - praticamente dei um berro.

Fala sério, era para estarmos na casa dos pais de Camila há uma hora, eles já tinha ligado cinco vezes e as crianças gritavam tanto que não pude dizer que a demora é porque queriam ir bonitos.

Todos os quatro pararam e girei os olhos porque Camila se misturava muito bem com as crianças. Até suas expressões... 

- Ótimo, agora que está todo mundo devidamente feio, vamos apostar corrida até o carro! - anunciei - não quero ninguém me interrompendo para pedir mais tempo. O tempo acabou. Três, dois, um, valendo!

Não dei nem tempo para que assimilassem, então eles simplesmente correram e os acompanhei.

- Coloca comida para os bichos! - gritei para Camila quando a ultrapassei, ansiosa para chegar primeiro que nossas crias.

- Ei! - ela protestou, ajudando Thomas a levantar quando o empurrei sem uso de força para passar - fala sério, que mulher maluca!

Não levei como uma ofensa. Em geral ela sempre dizia isso. Em vez de me ofender, cheguei primeiro ao carro e entrei, ajudando antes Daniel e Oliver a se arrumarem em seus lugares quando chegaram.

- Você precisa perder algumas vezes, Lauren, é sério - Camila surgiu falando - seu caso de competitividade está cada vez mais grave!

- Não sei do que está falando - me fiz de desentendida esperando todo mundo ficar em seus lugares - meninos, vocês acham que eu sou competitiva?

- Sim! - os três gritaram, uma risadinha de Daniel escapando no fim.

Olhei para ela pelo retrovisor. Hoje estava de vestido, o que vinha sendo comum, apesar de gostar de vestir camisetas e shorts como os irmãos ou, na verdade, como qualquer ser humano que tem seus gostos particulares. Havia duas presilhas de laços em cada lado prendendo seus cabelos para detrás da orelha.

- Vocês são maus - declarei, recebendo mais risinhos.

O caminho foi tomado pela competição de quem canta mais bonito, mas nessa Camila e eu sempre inventávamos que "puxa, vocês são todos tão parecidos, não dá para saber ainda quem é melhor" e assim ninguém ficava triste. Os três tinham um espírito muito competitivo, mas ainda precisavam aprender a perder, porque não eram como eu, que sempre vencia.

Infelizmente para os quatro, só podia existir uma vencedora, e essa era eu.

Estacionei em frente a casa dos pais de Camila, notando que meus pais obviamente já tinham chegado. Provavelmente todos já tinham comido ou estavam de péssimo humor por esperarem.

- Vamos lá, Daniel menina e Daniéis meninos - Camila colocou eles para fora do carro - lembrem-se de se comportarem.

- Por que temos que fazer isso? - Oliver questionou.

- É, a mamãe nunca se comporta - como Thomas olhava para Camila, a mamãe que não se comportava seria eu.

- É verdade... - Camila ponderou.

- Ei! - protestei - eu me comporto muito bem.

- Isso não é verdade, mamãe, mas você ainda é legal - Dan disse enquanto segurava minha mão.

Pelo menos alguém ali era gentil.

A porta da sala foi aberta e Sinuhe colocou a cara para fora.

- Finalmente - ela disse enquanto corria os olhos de um por um.

Suas sobrancelhas se ergueram ao ver Daniel.

- Oi, vovó - Dan disse com um sorriso largo.

Estava ficando mais expansiva, isso era bom.

- Oi, mamãe - Camila a cumprimentou também com um beijo enquanto enfiava os meninos dentro da casa.

- Ei, finalmente! - meu pai exclamou, sorrindo.

Todos eles pareceram tentar conter um olhar de estranheza ao ver Daniel vestida como qualquer menininha da mesma idade.

- Vamos comer antes que todo mundo aqui desmaie - minha mãe chamou e nos sentamos a mesa.

Não foi dito muita coisa além de conversas corriqueiras, mas eu sabia que estavam evitando falar sobre as crianças para fazer isso quando elas não estivesse por perto. Descobri que estava certa, como sempre, é claro, quando os três foram brincar.

- Então... - papai começou.

- Vocês não acham que vão confundir a mentezinha de Daniel deixando ele se vestir como uma menina? - Sinuhe foi direto ao ponto.

- Daniel é uma menina, mamãe - Camila falou - conversamos recentemente e pelo visto os três sempre souberam que ela é uma menina e ninguém nos contou oficialmente até então. Pensaram que também era óbvio para nós.

- Ele é uma criança, é muito novo para saber essas coisas. Ele pode muito bem estar confuso e imitando vocês porque são os exemplos deles!

- É uma criança, mãe, não um macaquinho de imitação - suspirei - e se quer saber, Daniel admira mais o papai do que a nós. Ela apenas se identifica como uma menina. Sempre foi assim, só que aparentemente achou que todo mundo também soubesse disso.

-Eu também sempre soube que sou uma menina - Camila comparou - você também, amor?

Balancei a cabeça.

- Não, eu passei a maior parte da minha infância achando que era um babuíno - admiti e vi minha esposa se entalar com uma risada - e até metade da adolescência achando que era um elefante, porque vi que elefantes são muito inteligentes como eu. Mas entendo o que quer dizer, acho que a gente simplesmente sabe.

- Eu não sei se isso é certo assim agora, é uma criança tão nova... - Alejandro disse, mas notei que mudou a forma de falar "ele" para "uma criança" e isso foi um passo.

- Há anos que temos a mesma dúvida - Camila confessou - e por isso ficamos de olho em como ela se comporta e se vê. Falamos com Dinah, que percebeu na mesma hora. Então procuramos especialistas para o caso de estarmos confundindo as coisas ou mesmo induzindo ao deixar Dan se comportar como uma garota.

- Estamos fazendo o que podemos, mas não somos apenas mães bobas, todo mundo por quem passamos concorda que Daniel é uma menina trans e que o melhor é deixar ela ser quem é, como sempre fizemos sobre os três. 

- Eu sei que é um pouco estranho no começo, chamamos ela a vida toda de "ele", mas é a realidade, sabe... Acredita que Daniel ficou indignada quando ficou sabendo que seu nome era de menino? - Camila riu ao lembrar - não estamos nos enganando, confie em nós... ou melhor, confie nela.

Camila indicou as crianças com a cabeça. Os três brincavam de acidente de carro, batendo seus carrinhos nos dos irmãos. Pareciam crianças como quaisquer outras, a não ser pelo detalhe de que eram meus filhos. Em geral sempre brincavam de todas as coisas, fosse de futebol e carrinhos, fosse de bonecas e casinha, mas estava ali, na postura. Daniel estava certa em se indignar por "não termos percebido" que era uma menina desde sempre. Sobre filhos, acho que nunca sabemos se estamos fazendo o certo, mas só podemos confiar no que estamos fazendo e, claro, em nossas próprias crias.

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