Trinta e Cinco - Não cite O Rei Leão

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*------------ quadro de avisos ------------*

Com o lencinho na mão. Sim fiz nota só pra dizer isso.

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Camila

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Tempero estava velho. Era tão estranho ver nosso cãozinho andando lentamente e se enroscando no canto. Os veterinários diziam que ele estava bem, apenas velho, e ofereceram que cortássemos um sofrimento que alegaram não existir. Seu rabinho ainda funcionava bem, e quando ele ouvia a gente falar seu nome, sacudia dizendo que sabia quem era e estava feliz em ser mencionado.

Eu não sei bem como funciona a velhice dos animais, então não soube o que fazer. Lauren, no entanto, era quem mais estava sentindo. Ela estava se comportando estranhamente nas últimas semanas depois da consulta recente com o veterinário e há cinco dias não ia trabalhar, apenas para ficar em casa mimando nosso primeiro filho.

Em geral eles ficavam sentados trocando carícias com Bichana Julieta enroscada ao lado. Ela era cinco anos mais nova que Tempero, mas isso não significava que não estava velha, apenas que estava mais temperamental.

Flagrei Lauren em pé na cozinha aquela manhã. Ela não se mexeu quando me aproximei e vi que ela observava Tempero no quintal dos fundos tomando um solzinho e um ventinho nos pelos. Passou-se menos de dois minutos quando o vimos erguer a cabeça contra o vento e então a deitar sobre as patas.

Lauren virou para mim e escondeu o rosto em meu ombro, chorando copiosamente.

- Ei... - sussurrei para ela e seu surto de choro. Acariciei seus cabelos.

- Ele se foi... - Lauren sussurrou - ele se foi, Camz... ele se foi...

Não perguntei como ela sabia. Não é que eu quisesse acreditar, pelo contrário, mas eu entendia que Lauren sabia as coisas de uma forma como ser humano nenhum sabia. Ela nunca errava, mas nunca antes isso fora tão ruim.

Senti minhas próprias lágrimas queimando meus olhos e esquentando minhas bochechas.

- Venha... - chamei para que se movesse comigo para o sofá.

- Eu não quero sair daqui - sua voz trêmula cortou o ar - eu... não sei se consigo.

- Não tem problema, vou te abraçar até conseguir - disse a ela.

Não queria usar palavras como "tudo bem". A tristeza de Lauren podia facilmente se transformar em raiva e não queria que isso fosse um ponto de transformação. Não estava tudo bem, era um momento difícil.

Ela soluçava como uma criança que perdeu os pais ou mesmo uma mãe que perdeu o filho. Vivemos quase dezoito anos com Tempero, se fosse um ser humano, ele estaria indo para a faculdade. Foi um longo tempo.

Ouvi barulho no andar de cima. As crianças acordaram e logo estariam aqui. Talvez não fosse bom que eles vissem o corpo de Tempero, mas nada mudaria a dor de ninguém. Eu continuei agarrada a Lauren, que também não me largou.

- Mamãe? - ouvi uma voz nos chamar e percebi pelo rosto que surgiu que era Thomas ou Oliver. Difícil dizer porque desmontados eles eram muito parecidos.

Olhei para ele, que ficou parado nos encarando como se estivesse lendo o que estava escrito em nossa postura.

- Thom, Dan! - o garoto se revelou sendo Oliver e logo eles eram três de novo.

Eles ficaram parados, nos olhando por um longo silêncio. Depois disso seus olhos correram pela casa e só avistaram Bichana  enroscada no sofá. Dan acotovelou Oliver para que visse porque entendeu primeiro, então os três correram, nos abraçando.

Lauren perdeu o chão e ajudei seu corpo a escorregar lentamente até estarmos todos juntinhos ao lado do balcão da cozinha, chorando.

- Estava na hora dele - tentei dizer alguma coisa que nos consolasse - ele viveu muito, mas é o ciclo da vida... é o ciclo...

- Por favor, não cite O Rei Leão - Lauren pediu.

Eu nem percebi que faria isso. Era um dos filmes favoritos dos meninos, embora Daniel prefira a Barbie e Carros, mas Lauren detestava O Rei Leão. Na verdade, ela detestava filmes como Procurando Nemo e O Rei Leão. Achava muito traumatizante para crianças, mas no caso ela era a criança.

Nunca superou a morte de Mufasa. Evitou assistir de novo e sempre que as crianças viam os filmes ela ficava longe. 

- Desculpe - pedi - só quis dizer que infelizmente a vida é assim e vamos ter que sentir dor algumas vezes pela perda de quem amamos.

- Mas eu não quero!

Não ousei falar nada. Estava se transformando em raiva e era indefensável porque ninguém quer mesmo uma coisa dessas. Simplesmente ficamos ali sentados. Thomas chegou a levantar e preparar chá para Lauren. Era só aquecer água no micro-ondas e colocar o saquinho de chá, mas ainda era melhor que o que nós duas fazíamos.

Não tenho a menor ideia de por que éramos tão ruins assim na cozinha.

Lauren aceitou o chá, o que já era muita coisa.

- Lembra quando o Tempero pegou minha Barbie? - Daniel relembrou - ele pegou ela pelos cabelos e correu pela casa todinha...

- E ele sempre ficava no meu restaurante - Thomas lembrou - mas ele comeu meu ovo frito de plástico e teve dor de barriga.

Oliver riu e eu quase ri também.

- Ele sempre foi uma ótima pista de corrida - Oliver comentou - melhor que a Juju, pelo menos.

- Tempero foi a primeira palavra de Thom - eu lembrei - foi quando ele roubou sua cenoura cozida.

Os meninos e eu rimos. Lauren estava quietinha, mas não chorava mais tanto.

- E ele comeu metade da revista da mamãe - Dan apontou - por que ele sempre comia tudo?

- Tudo menos a comida da mamãe - Thomas apontou e poderia estar falando tanto de mim quanto de Lauren.

- Teve aquela vez que ele comeu o bife que roubou do prato da mamãe e VOMITOU - os três gargalharam.

- E quando vocês eram pequenininhos ele se arrastava no chão para imitar vocês três aprendendo a engatinhar - contei.

- E quando vocês estavam aqui dentro - Lauren falou pela primeira vez apontando para ela mesma - ele ficava deitado com a cabeça em cima da minha barriga por muito tempo. Quando a mamãe queria tocar ele ficava bravo e rosnava para ela.

Olhei para Lauren. Havia um sorriso tímido em seu rosto.

- Quando nós achamos o Tempero, ele estava sujinho e achamos que tinha caído em um monte de tempero, por isso o chamamos assim - contei para os três.

- É porque ele veio para temperar a nossa vida - Thomas nos brindou com a comparação.

- E ele conseguiu - Lauren murmurou.

- Ele conseguiu - concordei - é por isso que agora ele está descansando.

Lauren acomodou o rosto em meu ombro, mas já não chorava. Tempero havia levado sabor para nossas vidas por longos anos, que ele agora descansasse em paz, depois de tanto ter trabalhado e sido feliz com nossa família maluca.

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Ai gente... o ruim de fazer história com bichinho envolvido é que eles não vivem pra sempre.

Triste.

Um, Dois, Três!Onde histórias criam vida. Descubra agora