Trinta e Sete - Psipsipsi

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Lauren

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Eu sabia que estavam preocupados comigo, mas eu não conseguia falar nada com a pedra que havia se transformado minha garganta. Curiosamente, Camila estava tão paralisada quanto eu. Ou mais. Fora ela quem encontrou Bichana, tanto quando ela veio, quanto quando ela se foi.

Camila sempre dizia que Bichana a detestava, tão rabugenta que era, mas sempre se derreteu. Foi assim que ela veio para nossa casa.

- Mamãe, não fica assim - Dan pediu e era muito louca essa coisa de ser consolada por filhos.

Eles não estavam bem, mas estavam sendo fortes.

- Ela estava velhinha e cansada - Thomas tentou ajudar.

- Eu vou sentir falta dela! - Oliver foi pelo lado contrário e abriu o berreiro como se ainda tivesse dois anos de idade.

Abri os braços e ele se aninhou em mim.

- Sabemos que ela estava velhinha - Camila sussurrou - mas dói um montão... ela chegou aqui em casa em um momento muito difícil.

Funguei, senti um nó na garganta, mas não queria contribuir com a história.

- A mamãe e eu estávamos tentando ter um bebê, um tempão antes de vocês virem - Camila contou e sua voz saía como se a rasgasse no meio - a gente quase conseguiu, mas o bebê se foi antes mesmo de podermos ver ele direitinho naquelas imagens estranhas do ultrassom. Doeu muito... Então eu fui ao abrigo de animais procurar algum bichinho que ajudasse Tempero a curar nossas dores. Eu fui até onde tinham gatinhos e fiz: psipsipsi.

- E ela veio? - Dan perguntou. Estava sentada ao minha frente com pernas cruzadas e mãos sobre o vestido cor de rosa. Ela tinha uma postura impecável mesmo na dor, se eu não estivesse presa em meus pensamentos sobre bichana, voltaria a pensar em como achava que Dan seria modelo.

Nem nisso eu conseguia me concentrar. Sempre vinha um miadinho para me distrair.

- Ela foi a única que ignorou, na verdade - Camila disse, rindo entre o monte de lágrimas que escapou de seus olhos - e foi por isso que a escolhi. Era igualzinha a mamãe.

Me recostei em Camila, que fez carinho em meio aos meus cabelos.

- Ué! - Thomas exclamou.

Eu praticamente senti Camila sorrir para ele, ainda que não olhasse. Não precisava.

- Quando começamos a sair, a mamãe não estava nem um pouco interessada em mim, sabia? - ela perguntou - mas é claro que eu dei o que ela queria e muito mais, então ela veio se aproximando... foi do jeito maluco dela, assim como a Juju. A gatinha malandra que precisava ser conquistada, não o contrário.

- A Juju era legal - Dan refletiu - primeiro Tempero se foi, então Bichana... puxa...

Ela suspirou em um lamento que pegou em todos nós.

- Era nada - Camila gracejou fraquinho sobre Bichana ser legal - ela odiou vocês três logo de cara. Tentou bater em um de vocês... não vou dizer qual... então se enroscou e decidiu que não valiam a pena. Claro que ela acabou sendo mais legal depois.

Claro que ela não se lembrava em quem Bichana tentou bater. Nem eu lembrava, se fosse ser sincera. Os primeiros dias com os bebês foram muito confusos.

- Ela era rabugenta - Thomas apontou.

- Igualzinha ao seu irmão - Camila disse, apertando o nariz de Oliver em meus braços - dois gatinhos bravos

- Devíamos fazer o memorial! - Thomas declarou - como fizemos para o Tempero.

- É verdade... acham que conseguem vir, Lern? Oli? Não vamos fazer isso sem vocês.

Balancei a cabeça.

- Não... eu vou - consegui falar, afastando o corpo de Camila.

Oliver seguiu grudado em mim. Pegamos as coisas favoritas de Bichana, que eram uma pena, a canela com luz e o ratinho de brinquedo e colocamos na caixa que ela amava ficar dentro.

Tínhamos feito o mesmo com Tempero, guardado seu disco de plástico verde retorcido, o macaco de pano e o frango de borracha enrolados no paninho onde gostava de dormir.

Suas coisas estavam guardadas embaixo da árvore no quintal que tínhamos plantado quando mudinha quando levamos Tempero para casa porque Camila insistiu que cachorros precisavam de uma árvore para fazer xixi. Ela estava grande e por vezes dava pêssegos maduros. Minha esposa também tinha insistido em ser um pessegueiro, dizia que pêssegos lembravam minha pele.

Colocamos as coisas de Bichana Julieta ao lado de quem foi seu companheiro por anos. Os meninos conseguiram material para raspar a árvore e fizemos as iniciais dela e o ano. Dan ainda conseguiu fazer um coração torto.

- Tchau, Juju - Camila murmurou, ainda que a gata de fato não estivesse ali - vai ser muito duro não ter ninguém ignorando quando eu faço psipsipsi... vai ser pior ainda porque não tenho mais motivo para fazer isso. Eu preferia ser ignorada, desde que estivesse aqui tentando meter a pata no meu mingau.

Camila soluçou e engasgou com o choro e eu a abracei apertado.

- Adeus, Bichana... perturbe muito Tempero onde estiverem, assim como sempre fez quando estavam aqui... Só não morda o rabo dele, ok? - sussurrei para o memorial.

- Não se esqueça de mim - Oliver pediu.

Ele estava muito sentido. Sua personalidade casava muito com a de Bichana Julieta e por vezes os dois se ajudavam sendo bravos ou malandros.

- Espero que tenha uma grande caixa de areia onde estiver, Juju - Thomas disse.

- Espero que não se esqueçam de colocar sua comida - Dan desejou - se esquecerem, pode reclamar que eu nunca esqueci.

Abracei minhas crianças. Era uma perda muito forte e muito próxima a de Tempero. Não era justo. Não era justo com ninguém que bichinhos se fossem tão cedo. 

- Ela vai ficar bem onde está, não é, mamãe? - Thomas ou Oliver perguntou, puxando minha roupa.

- Claro que vai! - garanti - Tempero vai cuidar dela. Agora eles têm um ao outro. Assim como você tem seus irmãos e a mamãe e eu. Família nunca se abandona. Vamos todos ficar bem...

- Vamos sim - Camila também assegurou, mas enquanto voltávamos para dentro de casa, a ouvi sussurrar um esperançoso "psipsipsi".

Ninguém veio. Ela curiosamente sorriu. Poderia parecer loucura, mas talvez o sentimento de ser ignorada a acalentasse, e era certo que ficaríamos bem um dia, porque temos uns aos outros e sempre teríamos.

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Eu não sei nem o que dizer. Até mais.

Um, Dois, Três!Onde histórias criam vida. Descubra agora