AVISO DE GATILHO: relato de tentativa de suicídio & depressão.
Ele ficou do meu lado e Isadora do lado da nossa mãe. Comi os primeiros pedaços em silêncio, observando os dois conversarem empolgados.
Ao contrário de mim, Isadora respondeu o entusiasmo do Gabriel com outro ainda maior. Tão forçado que eu quase engasguei e comecei à gritar, pedindo por socorro. Aproveitei pra trocar olhares de cumplicidade com minha mãe.
— Caprichei no molho, né? — ela murmurou.
— Ô. — levei mais uma garfada à boca.
— Gabriel, e como foi a recepção no prédio? Te trataram bem? — Ivana olhou pra ele.
— Sim, com certeza. Me deram todos os detalhes que eu precisava saber. — Gabriel me olhou de canto e sorriu, arrancando um meu também.
— Alguns até demais. — comentei e nós rimos.
— Você mostrou tudo à ele, Rosa? — Isadora falou comigo, me deixando séria instantaneamente.
— O necessário. — respondi.
— Então não foi o suficiente, aposto. Gabriel, amanhã eu posso te levar até o parquinho, onde as crianças brincam. Tem a piscina, também.
— A Rosa já me mostrou, Isadora. Mas valeu. Eu agradeço. — ele bebericou o suco.
— E as quadras? Você viu?
— Não, ainda não. Mas adoraria. — o rapaz me olhou novamente, mais rápido dessa vez.
— Pronto, vou te mostrar, então. São enormes. — Isadora sorriu e eu quis revirar os olhos.
Eles conversaram por mais um tempo depois que todos comemos, e eu me senti presa ali. Por algum motivo. Até que não aguentei e fui pro meu quarto.
Era óbvio que isso ia acontecer, já devia ter sacado. O vizinho da frente e a minha irmã adiantada. Pelo que conheço dela, vai querer a atenção do garoto o dia inteiro. E adivinha? Eu terei que lidar com a chatice, caso algo aconteça.
Suspirei deitada na minha cama, pensando no quão inútil era a minha existência. E ela só se tornou mais inútil desde que aquela merda aconteceu, dois anos atrás. Nunca contei isso ao meu diário, e nem pretendia.
Mas não tô aguentando, essa ansiedade só cresce.
"Sem cumprimentos, você já me conhece, imbecil. Bom, vamos lá...
Lá estava eu, dois anos atrás, no que eu pensava ser o auge da minha depressão. Tomava remédios controlados e fazia terapia. Eu não escrevia tanto quanto hoje, então minha escapatória meio que não existia. Eu passava o dia desejando a morte, e ninguém ligava.
Ninguém mesmo. Meus pais diziam "Boa menina" quando eu ia dormir dopada e no dia seguinte só davam atenção à Isadora.
Eu não os culpava, pra mim a culpa era só minha. Até hoje é, mas enfim...
Um dia eu não me contive. Aproveitei a ausência deles e fui até o armário de remédios com as mãos tremendo de ansiedade. Estava prestes à tomar todos os meus comprimidos de uma vez, mas eu tremia tanto que foi impossível tirá-los da embalagem.
Acabei derrubando tudo no chão e a Isadora apareceu querendo saber o que foi. Eu inventei que tinha me atrapalhado e causado aquele acidente, até que ela do nada começou à me chamar de mentirosa e ingrata. A garota parecia fora de si.
Discutimos muito e eu tava nervosíssima, então saí porta afora e ela me seguiu. Nem sequer lembrei do elevador e fui direto até a escada. Isadora jogou na minha cara que eu não tava melhorando e que a terapia era inútil. Eu disse que ela era insuportável e ninguém gostava dela de verdade, ela me respondeu com "E você acha que gostam de você de verdade?" e eu à empurrei.
Minha irmã não caiu, mas me empurrou de volta. Daí começamos uma briga física na escada, o que obviamente geraria algo horrível, mas nenhuma de nós pensou direito na hora.
Quando eu à vi rolar pelos degraus e bater a cabeça no cimento, foi como se eu tivesse matado à mim mesma por dentro, porque depois daquilo nunca mais fui a mesma.
Me culparam por meses. Minha relação com Isadora só piorou, e com a pressão de ter que cuidar dela constantemente, eu desisti da terapia e do medicamento.
Consegui convencer meus pais de que eu tinha me curado e eles acreditaram. Teve uma época que eu cheguei à acreditar que era verdade, mas não era. No momento eu só tô convencendo à mim mesma de que tudo tem solução.
Uma solução simples, que eu posso fazê-la a qualquer momento e dar um fim nesse pesadelo de uma vez por todas. É isso o que me conforta, de certa maneira. Eu já não tenho mais medo da morte, com certeza não terei aquela tremedeira e ansiedade que tive na vez que tentei.
A minha vida é um cubículo cheio de pessoas estressadas e que ignoram umas as outras.
É, diário...escrevendo isso eu me senti melhor. Valeu mesmo."
VOCÊ ESTÁ LENDO
coração inválido [mount]
Fiksi Penggemaronde rosalinda gosta de escrever e gabriel gosta de viver.