parte 26.

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Isadora me entregou as páginas ontem, mas eu tava muito frustrada pra ler na hora. Então guardei cuidadosamente em um lugar seguro e fui dormir.

Tudo o que Gabriel me disse ecoando repetidas vezes na minha cabeça.

Demorei pra sair da cama, meu sono tinha vindo com tudo. Ao despertar, reparei que estava sozinha no quarto. Quando terminei minha higiene no banheiro, vi minha irmã aparecer.

Reparei que ela estava maquiada. Provavelmente foi nossa mãe quem passou esse batom horrível nela. Como deve ser bom ter uma vida social. Pena que seria pedir demais, no meu caso.

Isadora saiu, pegando sua bolsa de ombro. Fiquei um pouco tranquila ao saber que teria tempo de sobra enquanto ela ficasse fora.

Depois do almoço, minha mãe pôs seus óculos escuros e disse que iria fazer uma visita à uma amiga. Corri e trouxe as páginas pra sala. Comecei à ler pela ordem dos dias.

"Noite passada tive um sonho estranho. Estranhamente bom, talvez? Vou tentar descrever as partes que eu me lembro...

Primeiro de tudo, eu morava sozinha, e era mais um dia casual na minha vida adulta. Eu tinha um cachorro que lambia meus pés enquanto eu andava. Depois de dar um beijo nele, eu saí do meu apartamento cheia de materiais.

Como se eu fosse uma mulher de negócios super ocupada. Quis rir ao pensar nessa possibilidade.

Depois disso, ficou tudo confuso. Eu discuti com umas pessoas na rua, aparentemente sem motivo. Andei por uns três quarteirões e só aí entrei num carro que supostamente era meu.

Cheguei no meu "trabalho" e todo mundo me tratou como se eu fosse a chefe, sendo que meu cargo era um dos mais...simples? Enfim, me senti poderosa e bem feliz."

Caramba, eu já tinha esquecido desse sonho.

Depois disso eu fiquei reclamando sobre minha vida, como sempre fazia na hora de escrever. Próxima página!

"Diário, tava lembrando da terceira série. Quando minhas colegas surtavam com Crepúsculo, álbuns de figurinhas e novelas do SBT. Não vou negar, eu acabava me envolvendo nessa fase eufórica, até porque é incontrolável.

Crianças são crianças, certo? Tem que ter um aproveitamento, algo que marque a infância.

Isso me fez refletir: minha vida sempre foi a merda que é hoje? Porque eu consegui achar pequenos momentos que me fizeram sentir alguém normal de verdade. Eu sempre digo pra mim mesma que nunca fui feliz de verdade, mas e se...

E se isso foi algo implantado na minha cabeça por uma energia negativa? E com "energia negativa" eu quero dizer DEPRESSÃO PROFUNDA. Merda, é como se eu tivesse sofrido um acidente que prejudicou meu cérebro e só agora eu tô raciocinando direito.

Não era pra ter saído isso, o problema é que eu não sei me expressar!!!

Tomei uma xícara enorme de café, provavelmente é a ansiedade falando por mim. Vou dormir e esquecer isso. Nunca mais leio essa página, então adeus."

Essa me deixou inquieta. Lembro que depois que decidi "esquecer isso", demorei muito à fazer acontecer. Às vezes ocorrem essas recaídas de felicidade momentânea.

Porém depois tudo volta à ser sombrio.

Na terceira e última página que sobrou, eu escrevi sobre uma crise que tive no dia posterior. Fiquei muito triste e só me lamentei até a última palavra. Olho pra janela e começo à sentir uma instantânea pena de mim mesma.

Esses anos que passaram tão devagar, a coisa mais produtiva que fiz foram as poesias e as histórias. No fim, o que sinto falta mesmo são elas. Me dói saber que não sobrou nada.

Quanto ao diário, me dá agonia só de perceber que eu só o usava pra despejar minha tristeza, meu ódio, minha repulsa.

Eu não aproveito nada da minha vida, absolutamente nada. Só sei reclamar, fazer escolhas erradas e me culpar por conta da Isadora. Troquei a única pessoa que quis me ajudar por esse pedaço de lixo?

Gabriel tinha razão. Antes de tudo, preciso reconhecer que preciso de ajuda. A pessoa que determina o meu fracasso ou a minha vitória sou eu mesma.

E curiosamente, eu não quero fracassar agora.

coração inválido [mount]Onde histórias criam vida. Descubra agora