Capítulo II

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Frieda foi empuxada pelas ruas da periferia de Regen, sem demonstrar resistência alguma, sua expressão seguia totalmente vazia, ela já não tinha perspectiva de nada e pouco se importava com o que lhe aconteceria dali por diante. O choque de perder de uma vez só todos os seus irmãos foi grande demais para ela, sem o amor dos pais, o calor fraterno era o único que ela conhecia, calor vindo de seus irmãos que nada tinham, mas dividiam o pouco que conseguiam com ela para que ela pudesse sobreviver até aquele dia, sim, Frieda pôde experimentar o amor mesmo que por pouco tempo, contudo agora todos eles estavam mortos. Segundos antes de seus olhos se tornarem ocos e perderem qualquer vestigio de brilho, era possível ver escrito neles uma única interrogativa e ela ecoaria no que restou de sua mente por anos: Por que eu não morri também? Não havia sentido em continuar vivendo sua vidinha miserável, entretanto, ela já não tinha vontade de nada, nem de viver e nem de morrer, mas ela não desgostaria se alguém fizesse o favor de lhe dar um fim indolor. 

Alheia ao mundo a sua volta, a menina foi levada mais ainda para a margem da cidade, local onde se encontrava o maior mercado dalí. Neste lugar se comprava e vendia de tudo, o caos daquele lugar contrastava com o silêncio na mente de Frieda, vendedores de peixe e caça berravam sobre promoções, crianças corriam para cima e para baixo com ervas medicinais em mãos oferecendo aos transeuntes, barracas estavam montadas em ambos os lados da rua lamacenta, chuva fina molhava praticamente tudo, comerciantes tentavam proteger seus grãos para que não ficassem húmidos. Como podia haver um mercado tão grande numa localidade tão nefasta? A resposta é mais simples que o esperado. 

Aquela era uma região desprovida de fiscalização, ninguém olhava para o que acontecia ali e quem olhava fazia vista grossa após receber o seu bocado, em vista disso, existia naquele mercado a venda de um produto raro, algo que apetecia em muito aos nobres e traficantes de renome, esse produto inestimável eram crianças de todas as idades e sexos, dentre elas havia um item ainda mais raro... Crianças santas. 

A pequena Frieda foi levada para um beco deserto, no final dele existia uma casa recuada com uma única porta de metal, o homem se aproximou e bateu na porta seis vezes em tempos iguais entre cada batida. Foi possível ouvir o sons de trancas sendo removidas e com um rangido a porta se abriu revelando um homem baixo de barba rala, olhos castanhos e pele queimada pelo sol, ele claramente não era um residente daquela cidade, mas estava alí para "trabalhar", o homem olhou para aquele que trazia Frieda reconhecendo-o de imediato, depois voltou sua atenção para ela. 

- Que olhos interessantes. - Comentou o baixote. - É uma desperta? 

- Ainda não, mas não passou da idade para tal. - Respondeu o traficante. - Está em péssimo estado, mas acredito que conseguirei ao menos vinte moedas de prata por ela, farei um bom negócio. 

- Se tudo der errado ainda dá pra vender o par de olhos para um colecionador. - Deu de ombros. 

Os homens conversavam entre si como se falassem sobre uma vaca ou um animal raro capturado por algum caçador. 

- Entre logo, os clientes já chegaram. - O baixote abriu caminho.

O homem entrou puxando a corda presa ao pescoço de Frieda, ele a levou através de um corredor estreito, após vinte metros o homem abriu outra porta e imediatamente os sons de conversas paralelas, discussões, anúncios e até mesmo mine leilões preencheram o ambiente, mas a mente de Frieda permanecia silenciosa. Era um galpão enorme, havia toda sorte de pessoas ali: traficantes de pessoas, colecionadores, nobres, representantes de nobres e membros de organizações mercenárias interessados em adquirir crianças com potencial para receber treinamento e se tornar ferramentas excelentes. Aquele também era um lugar onde as pessoas se encontravam para fechar outros tipos de negócios, como: assassinatos sob encomenda e compra e venda de obras de arte contrabandeadas. O galpão tinha áreas divididas em quadrados dispostos em fileiras, os dois seguiram andando por entre a multidão até finalmente pararem num cercado de cordas, era assim que cada "comerciante" delimitava sua área.

O traficante retirou a corda que dava acesso ao corredor mais largo, por onde os clientes transitavam, em sua área tinha uma mesa, um poste e duas gaiolas grandes, obviamente usadas para evitar que o "produto" fugisse. Ele empurrou Frieda para dentro de uma das gaiolas e trancou a porta, foi até a pequena mesa e começou a redigir um documento com o tamanho, o peso e a idade dela, além de seus atributos físicos, era sempre o mesmo para todos os escravos, os dos despertos recebiam a informação adicional de qual eram os tipos de heilig que eram capazes de manipular e em que idade haviam despertado. Algumas pessoas se aproximaram interessados em comprar a menina, mas assim que descobriam que ela não era uma desperta perdiam o interesse dada as suas condições físicas, ela não parecia ser do tipo que viveria muito. 

As horas avançaram, o homem tentou alimentar a menina que ficou o dia inteiro de pé no mesmo lugar em que ele a colocou quando chegaram, mas ela não reagiu às ofertas de alimento por parte dele. A tarde estava chegando ao fim, o traficante começou a guardar suas coisas, foi quando um homem em seus quarenta e sete anos passou na frente da baia dele. O homem em questão tinha porte atlético e caminhava com elegância, seu cabelo grisalho e barba aparada lhe tornava extremamente charmoso, seus olhos verdes como esmeralda eram destemidos, ele tinha cerca de um metro e oitenta de altura, trajava uma calça preta, camisa azul marinho e sobretudo marrom, calçava botas de couro tingido na cor preta. Caminhava com a cabeça erguida e postura impecável, uma de suas mãos repousava em seu bolso, estava atento a tudo a sua volta, mas sua mente estava envolta em um silêncio ensurdecedor. No instante em que passou na frente da baia o homem ouviu uma voz infantil romper o silêncio em sua mente, "Por que eu não morri também?", a pergunta surgiu como um sussurro em agonia, instantaneamente  sua visão periférica capturou a imagem de Frieda, seus olhos se moveram sutilmente na direção dela e os olhos vazios dela se prenderam aos seus, ele parou. Ficou parado por um longo segundo, virou apenas a cabeça na direção da menina e fitou-a por um instante. Frieda não estava olhando para ele intencionalmente, apenas calhou de coincidentemente o homem parar justo no lugar onde seus olhos se fixaram. 

- Posso ajudar? - Perguntou o traficante ao notar que alguém parecia estar interessado. 

O homem não respondeu, caminhou lentamente até a gaiola e levou uma das mãos até a grade, o que estava fazendo? Não foi até alí para comprar nada, não tinha interesse em toda aquela nojeira, então... por quê? Por que ele, que nunca teve sequer um animal de estimação, que já não se preocupava com ninguém além dele, não podia simplesmente fingir que não viu nada e seguir seu caminho? Ele não sabia as respostas, não saber as respostas apenas o deixou mais curioso, seus instintos nunca lhe traíram e foi por isso que ele retirou a mão do bolso e atirou uma moeda para o traficante. 

A moeda girou no ar quase que em câmera lenta, era possível enxergar cada detalhe dela, a rosa adornava a cara da moeda de maior valor daquele reino, um homem pobre poderia trabalhar por todo um ano e até pela vida inteira sem nunca tocar uma moeda como aquela. A moeda de ouro pousou delicadamente na mão do traficante, ele não podia crer que um produto defeituoso lhe renderia tanto, apressadamente correu até a gaiola e começou a abrir a fechadura, errando-a várias vezes devido ao nervoso, queria terminar depressa antes que o cliente mudasse de idéia. Ele apanhou a corda e estendeu para o homem, o mesmo não a pegou, sequer olhou para ele. 

- Retire a corda, ela não vai a lugar algum. - Falou confiante. Sua voz era grave e madura, autoritária. 

O traficante deu de ombros, não era problema dele se o cliente perderia o produto uma vez que já tinha pago. Ele correu até a mesa e prontamente ofereceu o documento de venda para que o homem assinasse e assim ele fez. 

- É-é to-toda sua. - Disse nervoso.

O homem não se deu o trabalho de responder, caminhou até a menina e a pegou no colo. Ela era leve, muito mais leve que o esperado de uma criança de seis anos. Ele olhou para o papel em suas mãos antes de colocá-lo no bolso e recomeçou o caminho que fazia antes de notar a menina. 

- Frieda, não é? - Ela não respondeu a essa pergunta, ele não insistiu. - É irônico ter um nome tão pacífico e possuir um olhar tão caótico. - Disse para si. - Mas não é um nome ruim. Vamos para casa, Frieda. 

Ele caminhou para fora dali, o que havia ido fazer em um lugar como aquele é um mistério até hoje.


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Cheguei atrasada, mas cheguei. Não esqueça de votar e comentar. Obrigada por ler mais um capítulo. 💜💜💜💜💜

Wanderfalke: A batalha contra os Haidu.Onde histórias criam vida. Descubra agora