A Corrida

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Enid pedalou o caminhou todo de volta para casa pensando na corrida e em como faria para sair tão tarde. Ela não queria se meter em confusão, mas também não queria deixar aquela garota perder a corrida. Por que se importava tanto?

Anthony estava certo, ela não conseguiria correr, mas iria tentar. Por trás da pesada maquiagem da garota, Enid viu uma tristeza tão grande em seus olhos que não conseguiu parar de pensar nela e em como tudo era injusto e sem sentido.

Ela logo chegou à casa branca de número cinco e deu a volta indo deixar a bicicleta na garagem.

- Enid? É você querida? – disse uma voz vinda de dentro da casa.

- Sim, sou eu – respondeu a menina pegando sua mochila da cesta e subindo o degrau para entrar em casa pela porta que dava na cozinha.

Uma senhora de cabelos grisalhos e sorriso simpático a recebeu com um abraço e um beijo no rosto.

- Então como foi? – perguntou ela curiosa.

Enid riu e jogou a mochila rosa no ombro.

- Foi bem. Na verdade foi ótimo – mentiu. Ela não iria contar sobre a corrida.

- Fico tão feliz querida. Voltar à escola vai te fazer bem.

Em silêncio Enid concordou.

- Vou tomar um banho e já desço.

- Claro, claro. Você precisa comer antes de ir a clinica – disse a senhora voltando sua atenção às panelas no fogão.

- Vovó?

- Sim?

- Eu te amo – disse Enid pegando a senhora de surpresa.

A mulher abriu um sorriso caloroso e seus olhos marejados quase deixaram escapar uma lágrima.

- Eu também. Muito.

- O que é isso? Uma reunião de família sem mim? – disse o homem que entrava pela mesma porta que Enid.

 - Vovô! – Enid exclamou jogando os braços em volta dele.

O homem gargalhou a abraçando.

- Quanta felicidade em ver seu velho – brincou ele – Viu só Helena? Ainda sou atraente.

- Não seja bobo, Max!

Enid riu dos avós e se afastou.
- Já volto.

- Vai lá, meu bem – disse Max sorrindo a vendo sair do cômodo – Acha que ela está mesmo pronta para isso?

Helena encarou seu marido pensativa.

- Já está na hora, Max. Não se preocupe. Venha, lave as mãos e me ajude aqui.

- Você que manda, capitã – respondeu o homem rindo.
 
Enid se dirigia a escada que levava ao seu quarto quando passando pela sala a foto lhe chamou a atenção. Em um bonito porta-retratos na estante junto com outros tantos estava uma fotografia de seus pais e ela ainda muito nova. Engoliu a seco a encarando e devagar caminhou até a estante.
- Ei pai, ei mãe – sussurrou tocando a foto com delicadeza – Sinto saudades... Eles ainda não me consertaram...
A garota respirou fundo engolindo qualquer resquício de choro que quisesse aparecer e mancou até o topo da escada entrando em seu quarto.
Enid se arrumou em frente ao espelho e tomou um susto quando virou-se para a cama e viu seu gato deitado em cima do seu casaco.
- Darth! Você me assustou - ela sussurrou para não acordar os avós - Com tantos lugares para você se deitar, por que sempre se deita nas minhas roupas? - perguntou com as mãos na cintura encarando o gato preto com grandes e lindos olhos verdes.
O animal parecia debochar dela enquanto se lambia.
- Sai daí, seu danado - disse a menina espantando o gato.
Darth resmungou um miado e pulou da cama indo para a sua própria no canto do quarto. Anthony tinha o batizado assim por que ele era fã de Star Wars, mas Enid tinha certeza que seu gato odiava aquele nome.
Ela bateu os pelos do gato do casaco rosa e o jogou sobre os ombros se olhando no espelho de novo e suspirando. Então amarrou os cabelos em um pequeno rabo de cavalo e conferiu suas botas.
- Não vai abrir esse bico - disse ela para o gato saindo do quarto.
Enid não teve dificuldades em escapar de casa na calada da noite, seus avós haviam ido dormir cedo, logo após o jantar. Ela foi até a garagem, pegou sua bicicleta e pedalou pela estrada sem movimento até a academia. Seu relógio de pulso marcava 23:30 quando ela chegou a pista de atletismo nos fundos da escola.
Olhando em volta a garota se aproximou do grupo reunido do lado de fora da pista. Todos calouros e nenhum deles quis muita conversa com ela. A noite estava fria e Enid sentia sua perna reclamar da temperatura, mas a arrastou da melhor maneira que pôde. Não havia sinal de sua parceira em lugar algum.
- Novatos! Peguem suas duplas e vão para a pista! - berrou um garoto que Enid não se lembrava de ter visto antes.
- Que ótimo. Ela não vem - Enid sussurrou caminhando até a pista.
Todos olharam para ela como se fosse um extraterrestre.
Sozinha.
Ao todo eram cinco duplas sem contar com Enid que acreditava que correria sozinha, mas a garota gótica apareceu antes de darem o sinal. Ela não falou nada apenas se aproximou com sua cara pintada e amarrada e ficou ao seu lado.
- Oi. Que bom que veio. Estava pensando que correria sozinha – Enid disse sorridente tentando puxar conversa, mas a garota apenas a encarou sem expressão.
Uma garota entrou no centro da pista e parou na frente das duplas.
- Já sabem as regras. Precisam correr três voltas completas em duplas, mas se perceberem que seu companheiro é um bosta e não consegue... Podem deixá-lo pelo caminho e terminar a corrida. Se conseguirem é claro - disse ela com um sorriso cínico.
Enid quis estrangulá-la pela sua voz irritante e debochada.
- Preparem-se - disse a morena saindo da frente.
As duplas se preparam se alongando e se esticando. Enid e a gótica não fizeram nada. Elas estavam tão desconfortáveis uma com a outra.
- Atenção! - gritou um cara um apito pendurado no peito - Ao meu sinal.
Ele pegou o apito e o soprou alto. As duplas saíram em disparada pelas raias. Alguns correram respeitando o ritmo do seu companheiro, outros deixaram eles para trás. Enid se surpreendeu quando a garota correu igual com ela. Elas estavam indo bem apesar de tudo já tinham ultrapassado duas duplas mais lentas. Os músculos das pernas de Enid formigaram em resposta ao esforço repentino e ela sentiu algumas fisgadas. As ignorou quando ultrapassaram mais uma dupla. Enid se perguntava como a menina conseguia correr usando aquelas botas pesadas.
- Quem é ela? – perguntou a morena com cara de nojo ao rapaz ao seu lado e apontou para Enid.
O rapaz abriu um livro de capa preta e mostrou algo para ela que sorriu se deliciando.
- Isso é interessante. Javis? - disse a menina chamando outro rapaz.
- Sim?
- Traga o bastão – disse sorrindo – Derrube ela.
O rapaz sorriu e pegou um bastão de basebol se aproximando da pista. Enid corria na raia do canto, então ele se preparou como o rebatedor e esperou o momento certo. Enid estava tão focada em correr que não o viu quando a acertou. A dor a fez cair e gritar. A gótica se assustou e parou.
- Filho da mãe! – gritou Enid segurando o joelho direito.
- Vamos lá! - a menina exclamou para Enid.
- Não! – Enid exclamou – Vá terminar a corrida!
- Para que?
- Você tem uma chance se correr agora!
- Se não percebeu estamos fodidas de qualquer forma - disse a menina pouco se importando.
- Você tem uma boca muito suja, garota – reclamou Enid entre dentes.
A gótica deu de ombros.
- Anda! Me deixe. Termine a corrida – insistiu Enid com os olhos marejados.
- Ele nem bateu tão forte. Você devia conseguir ficar de pé.
- Mas não consigo! – gritou Enid surpreendendo sua companheira – Vá embora e termine a corrida! Não quer ganhar essa droga?
A garota de afastou a encarando.
- Estou me fodendo para a corrida.
- O que? Mas você hoje cedo você me disse para aparecer!
- Pensei bem... Nada vai mudar o fato de que sou uma perdedora.
- Não diga isso!
- Vocês duas! – gritou a morena rindo – Acabou! Estão fora! Vocês fracassaram. Estão fadadas a passar o resto do ano letivo andando juntas.
- Que se foda! – exclamou a garota gótica dando as costas e indo embora.
- Ei! Espere aí! - gritou Enid em vão.
Enid estava muito irritada. Ela tinha fugido de casa para ajudar aquela idiota que nem se deu ao trabalho de tentar ganhar a droga da corrida. Bufando ela  conseguiu se erguer e mancar para fora da pista ao som das risadas dos veteranos.
- Olhem pessoal! A aleijada achou mesmo que venceria a corrida.
O som das risadas deles deixou Enid ainda mais irritada do que a dor que estava sentindo.
- Garota estúpida! Ela podia ter vencido – Enid praguejou indo embora.
Sem ainda conseguir pedalar, Enid fez metade do caminho para casa a pé. Ela pensou em ligar para Anthony e pedir uma carona, mas não queria ouvir o sermão que ele lhe daria, então aguentou firme e chegou em casa moída. Dando graças por seus avós terem o sono pesado, ela subiu as escadas na ponta dos pés e entrou no quarto sendo recebida pelo seu gato se roçando entre suas pernas.
Enid o pegou no colo e fazendo carinho em sua cabeça sentou na cadeira de sua escrivaninha.
- É Darth... Eu sou uma aleijada - Enid sussurrou e o gato esfregou o topo da cabeça no peito dela.
Ela o beijou e o soltou no chão começando a tirar suas roupas.
Arrancou suas botas, o casaco rosa e sua calça. Caminhou até o grande espelho e ficou de perfil encarando sua perna. Uma grande cicatriz começando da sua coxa direita descia até quase o pé.
Ela soltou um suspiro derrotada, vestiu seu pijama e caiu na cama.
 
Na manhã do dia seguinte Enid não encontrou a garota pelos corredores da escola, mas viu alguns daqueles que estavam na pista correndo com elas a encarando com uma espécie de pena. Ótimo. Era só o que faltava.
- Você correu não foi? - Anthony perguntou assim que ela sentou ao lado dele na classe.
Enid o encarou com uma expressão de 'não enche'.
- Sim. E perdi.
- Droga. Sinto muito, mas eu avisei.
- Eu só perdi por que bateram na minha perna com um taco de beisebol - sussurrou a garota ainda irritada.
- O que? - Anthony exclamou chamando a atenção dos colegas.
Ele se recompôs e continuou quando os alunos voltaram suas atenções para frente.
- Eu sabia que eles faziam todo tipo de coisa. Você está bem?
Enid assentiu.
- Ótima.
Ela não quis comentar que a menina a deixou sozinha e foi embora.
 
Na hora da saída ela se despediu de Anthony e foi para o bicicletário encontrando finalmente sua parceira. A garota andava distraída com seus fones de ouvido e mochila nas costas. Como era de se esperar estava toda de preto e com aquela droga de maquiagem. Parecia ter saído de um filme do Tim Burton.
- Ei parceira! – exclamou Enid se aproximando da menina e a tocando no ombro.
Ela se esquivou abruptamente e encarou Enid com raiva.
- Não toque em mim - alertou tirando os fones.
- Me desculpa. Eu te chamei, mas você não me ouviu. Não te vi hoje e como nós agora somos parceiras -
- Não sou sua parceira - cortou a garota com língua afiada.
- Aquela derrota vergonhosa de ontem a noite diz o contrário.
- Apenas me deixe em paz.
Enid perdeu a paciência.
- Qual é o seu problema? Só estou tentando ser sua amiga.
- Não estou procurando por amigos.
- Ok. Então apenas me diga quem você é. Se vamos passar o resto do ano como duas siamesas fracassadas, preciso saber pelo menos seu nome.
- Tudo bem! Meu nome é Wednesday, tenho 16 anos, meus pais estão se divorciando por que meu pai virou um monstro bebedor de álcool sem limites! Moro numa casa caindo aos pedaços que mal podemos pagar e odeio a porra dessa academia! Isso está bom para você? - gritou a menina deixando Enid estarrecida.
- Eu... Eu sinto muito - foi tudo que Enid conseguiu formular para falar.
- É, eu também.
 

A corrida dos Excluídos - WENCLAIROnde histórias criam vida. Descubra agora