Dois dias minha vida se passam entre intervalos de dor intensa e a falta constante de alguma coisa em meu peito. A dor puxa meus órgãos de um lado pro outro, os retorce e por vezes me arranho na barriga pensando que tem alguma cobra dentro dela e então ela se vai, aos poucos e minhas mãos voltam a procurar algo sem nome pela cama.
Maressa me alimenta, molha panos com água e sal e passa pela minha cabeça e quando a dor volta, impede que eu me arranhe. Pro meu eterno alívio, aos poucos, percebo que as dores vem em menor frequência, menos sufocante, menos vorazes em meu intestino e assim eu sei que cada vez deixo um pouquinho de ser humana. É irônico, eu sei, mas quando começo a me sentir bem com meu corpo, meu coração se enche de vazio.
O cozido da noite é feito de uma carne gordurosa imersa num molho igualmente gorduroso com feijões e mais pão para acompanhar. Maressa assa o pão na cozinha lá embaixo, o cheiro por vezes me acorda quando meu corpo cansado cai em uma soneca turbulenta. Isso também posso agradecer a dor, ela invade tanto meus pensamentos que esqueço do quão cansada devo estar.
— Peta veio deixar mais comida essa noite — Maressa comenta.
Ignoro.
— Ela me trouxe notícias.
Eu tenho perdido muitas delas, mas quem pode se concentrar na tv enquanto sente a dor de um parto?
— Deixa eu adivinhar — Digo de boca cheia mesmo — Anis quer bater um papo com você?
— Seu pai e seu amigo foram libertados.
Acho que meu coração sai pela boca.
Literalmente.
Minha cabeça é jogada pra trás, largo a colher sobre a cama e minha mão aperta o meio de meus seios, na região em que meu coração está dançando a mais agitada das raves. Espero a sensação passar, mas não passa, não passa e não passa.
Meus ouvidos latejam com o tum, tum, tum acelerado e insano e minha perna passa a latejar a frequência dele. No início não dói tanto mas depois de um tempo (minutos, horas?) Meu peito inteiro fica dolorido, meu ouvido dói e minha perna… Nem imagino porque ela me odeia tanto.
O lado bom é que não grito, me falta ar. O coração resolveu dançar lambada entre minhas costelas e qualquer ar que ouse entrar em meus pulmões é expulso no ritmo de sua batida. O que posso fazer é ficar parada, com as mãos o mais afastadas possível do meu peito enquanto tento não vomitar meu cozido.
Quando acaba, não sou mais Heli, sou um pedaço de pano velho que não serve mais pra nada. Cansada como um cavalo depois de puxar uma carroça de chumbo desmonto, mas ao menos não escuto mais meu coração.
Que modos divertidos tem o meu corpo de me fazer sofrer.
—Heli?
Gemo em resposta. Caramba… Que fome!
—Pai… — Murmuro — Comida…
—Vamos por partes, ok? Você se sujou toda, vou te levar pra banheira primeiro.
Fico envergonhada de novo… Então ela me segura como uma noiva e percebo que é do cozido que ela fala. Em seu colo, vejo a cama uma bagunça de porco, feijão e suor… Muito suor, a cama está cheia de manchas de suor. E quando passamos pela privada eu lembro que não tenho mais intestino e nem bexiga, eles foram embora com golpes dolorosos de dor.
Maressa tira minha roupa e nem disso tenho mais vergonha, a água que cai do chuveiro é como morfina e abro a boca pra prová-la salgada. A cuspo.
VOCÊ ESTÁ LENDO
O Retorno das Alfas
FantasiaHeli foi infectada, Anis foi liberta e o relacionamento entre Heli e Monara parece ter desmoranado enquanto o destino de Heli e Anis parece cada vez mais próximo. No último livro da trilogia, segredos serão revelados e a guerra que parecia ser apena...