CAPÍTULO 6

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Ann Sophie estava na África do Sul! Ela estava encantada com o povo, a comida, a dança, tudo.
Os moradores eram encantadores, as paisagens eram incríveis. Ann nunca sentiu tanta vontade de saber desenhar como quando passeou nas feiras deles. Era tanta cor, tantas pessoas lindas!
É claro que ela passou pelos lugares que os simples turistas não iam e seu coração se comoveu pelas mazelas daquele povo. E ela pensou em Candid.
Nas fórmulas malucas dele, pensou nele entrando nos hospitais escondido e curando os pacientes. Ele adoraria aquele país, Candid era vibrante como eles.
Ela ergueu os olhos para a lua, estava na sacada de seu quarto de hotel. Dois seguranças de seu pai faziam a ronda lá embaixo, ela podia vê-los andando, atentos a cada barulhinho. Mais dois estavam no corredor. E haviam também os seguranças sulafricanos, que vez ou outra vinham perguntar se ela precisava de alguma coisa.
Era necessário e Ann não era idiota de achar que iria para a África sem seguranças. Seria melhor? Sim, seria, mas ela desfrutava do máximo de qualquer situação, não importando as circunstâncias.
Ann sorriu para a lua e acabou soprando um beijo na direção em que ela achava que ficava a América, na direção do coração de Candid.
Tinha acabado. Ela tinha esgotado suas estratégias, tinha ido até o fim. Ela não o julgou por ter compartilhado sexo com Elsie se passando por Hon, ou por ter um filhote e ter escondido dela. Ela ficou triste por ver o quanto ele a via como infantil e imatura. Candid não a conhecia, Candid não pensou que para ela, aquele problema dele era a chance de ajudá-lo, a chance do envolvimento deles ficar mais forte.
Candid pensou que ela não o entenderia e se ele pensou isso, era por que ele, Candid, não conseguia entendê-la, não a via como algo além de uma fêmea egoísta.
Por que seria muito egoísmo, ficar brava, xingar e brigar quando quem precisava ser cuidado, ser consolado, quem tinha sofrido mais naquela história tinha sido o filhotinho.
Um filhote tão novinho cheio de mágoa, ainda mais um filhote Nova Espécie que por definição deveria ser puro e amoroso, um filhote assim precisava de atenção, de carinho.
E havia outra coisa, algo que seu coração não queria admitir, mas estava lá.
O fato de Candid não querer dividir sua vida com ela, não a sentir como parte dele como acontecia com seus pais. Não deixá-la acessar uma parte que era só dele, uma parte que ele não mostrava para ninguém, sua parte sombria. Enquanto ele não pudesse compartilhar toda a sua alma com alguém, ele nunca amaria de verdade.
Ann fez uma prece por Candid e Max. Ela orou usando o seu coração nisso, ela pediu a Deus que guardasse Max de todo o mal a que ele estava sujeito fora da Reserva e pediu que Deus desse sabedoria para Candid. Para que ele tivesse discernimento de como lidar com Max.
Feito isso ela suspirou, encheu seus pulmões com o cheiro mágico daquele lugar, deixou seu corpo vibrar com a energia que sentia habitar aquela terra, aquele povo e se virou para entrar em seu quarto.
Ela parou, havia uma sombra ali, ela mal podia acreditar que não sentiu que havia alguém atrás dela.
"Eu sinto muito." A sombra disse e tudo se apagou.

Ann estava tendo um pesadelo horrível onde ela corria de uma sombra enorme, o pânico, o medo e o terror a afligiam, ela corria em sua velocidade máxima, seus pulmões doíam, seus pés sangravam. A sombra escura parecia aumentar de tamanho a cada vez que ela olhava para trás, os olhos da sombra pareciam ser feitos de fogo azul.
Ann caiu, a sombra cobriu seu corpo e ela gritou quando os olhos de fogo azul lhe queimaram o rosto.
"Shiiiii..." Ela ouviu o som, entendeu que estava sonhando, mas não quis abrir os olhos. Ela inspirou e não sentiu o cheiro de quem tinha feito o barulhinho a acalmando, então ela abriu os olhos
Para se deparar com olhos azuis brilhantes e voltar a gritar com toda a força de seus pulmões.
"Cala a boca!" Ela fechou a boca, percorreu o rosto do macho que estava inclinado sobre ela e quis gritar de novo, porém se conteve, pois ele tinha as mãos nos ouvidos.
"Pesadelos são comuns depois da minha mordida. Eu sinto muito." Ele disse, se levantou e lhe deu as costas.
Ann fez um esforço para se sentar, seu corpo todo estava mole, ela conseguiu depois de um certo tempo.
E só aí ela pôde realmente absorver a aparência de seu captor.
Ofídico, só podia ser. A pele negra lembrava muito a de sua madrinha, os cabelos eram negros, cacheados. Ele era alto, devia ser maior que Brave, Bells ou Tree. Forte, é claro, muito forte, mas ele tinha aquela postura meio relaxada, seu andar era diferente. Ele não pisava como os felinos ou caninos, havia uma leveza, ele andava arrastando os pés, parecia deslizar.
Ele teria sido criado como a madrinha dela? Se fosse seria de primeira geração, o fator humano seria bem menor. Ela não teve como olhar bem suas feições, mas o sentia familiar, ele seria irmão de Sophia e de Bells?
Ele usava uma roupa estranha, parecida com aquelas calças indianas, bem largas nas pernas e justas na cintura e nos tornozelos. Estava sem camisa e seus cachos caiam pelas costas fortes.
"Onde estou?"
Ele se virou e sorriu.
"Isso não importa muito, anjo. O lugar, eu quero dizer. O importante é o por quê." Ele disse derramando água de um cântaro de barro num copo também de barro. Ele foi até a cama, Ann pegou o copo e bebeu a água fresca. Ela tomou tudo e estendeu o copo pedindo mais, ele sorriu e lhe serviu novamente.
Ela saciou sua sede, ele saiu do quarto dizendo que traria comida, Ann esperou os passos dele deslizarem para longe, ela teve de colocar toda a sua concentração em seus ouvidos para ouvir os ditos passos.
Ela se levantou e foi até uma janela, o quarto tinha três, olhou para fora e viu que havia um jardim bem debaixo desta. Ela pulou a janela e correu, correu com tudo o que tinha até chegar num precipício.
Ann parou, olhou em volta, ninguém a seguia, ela então pulou. A água profunda recebeu seu corpo, foi como atravessar uma parede de vidro, o choque da água gelada lhe deixou confusa por uns minutos e por isso, Ann se desesperou. Ela estava muito abaixo da superfície, tinha expulsado muito ar de seus pulmões na queda, seu peito ardeu, mas ela se lembrou das lições de natação naquela escolinha humana.
"Mergulhar exige calma e disciplina." O professor humano dizia. Ela tinha sido instruída a não mostrar que era capaz de ficar submersa durante muito mais tempo que as crianças humanas, então quando chegava em casa, Ann Sophie mergulhava em sua piscina.
É claro que na piscina a água era doce, mas ela era capaz de prender a respiração e nadar até a superfície.
E foi o que ela fez, Ann Sophie emergiu e inspirou o ar salgado, se localizou, inclusive ignorando as pedras enormes as quais ela podia ter caído bem em cima e morrido, e nadou até uma praia.
Demandou muito esforço, ela percebeu que estava fraca, mas conseguiu alcançar a praia. Ann ficou deitada por algum tempo até sentir que suas forças estavam voltando e só aí ela correu.
Ela pegou uma trilha, havia várias, mas essa estava na direção contrária ao precipício, então ela continuou na trilha, pois sabia que estava se afastando da casa.
Depois de muito tempo correndo, ela ouviu o barulho do motor de um jipe, Ann se escondeu.
Seu coração baita desesperado, ela só conseguia pensar nas histórias de Honor. Das caçadas que ele participou.
Ann correu por algumas horas sem parar levando sua resistência ao máximo, mas ela parou depois de ter certeza de ter passado pela mesma árvore umas duas vezes.
Ela inspirou e o cheiro da maresia lhe tomou o nariz, ela andou alguns metros e se deparou com o mar. Ela estava na praia novamente.
A árvore! Ann correu até a tal árvore, mas dessa vez não a achou.
Ela se sentou na areia e começou a respirar profundamente com os olhos fechados.
Ela precisava acalmar o pânico que estava começando a crescer em seu âmago.
Ann Sophie sentia a vontade de gritar, de rugir e de sair quebrando tudo o que encontrasse pela frente, mas só havia água, pedras e muita areia ao seu redor.
Seu estômago roncou e ela não conseguiu se lembrar de sua última refeição, então inspirou o ar em busca de caça, haviam árvores, talvez algum riacho, deveria haver animais ali.
Um coelho! Ela localizou o animal algumas milhas a esquerda, ela correu bem levemente, se aproximou do pobre bichinho e deu o bote.
O coelho esperneou, Ann lhe torceu o pescoço, numa tentativa de lhe minimizar ao máximo o sofrimento.
Ela voltou para a praia, usou as garras para despelar o coelho e depois de um bom número de tentativas, onde ela desperdiçou muita carne, ela conseguiu.
Ann lavou a carne na água do mar, balançou bem, catou gravetos, fez fogo e assou a carne. Estava salgado, mas com a fome que lhe doía o estômago, a carne de coelho temperada com água do mar (blerg!) até que ficou gostosa.
Ela se deitou na areia e ficou lá até a noite chegar. Havia uma espécie de gruta nas pedras que formavam a montanha de onde ela pulou, era um reentrância até grande, Ann se refugiou ali para dormir. Ela estava quase fechando os olhos quando se lembrou do pesadelo, então se esforçou para ficar acordada.
No outro dia logo de manhã ela correu novamente e dessa vez voltou a praia bem mais rapidamente que no outro dia.
Ela caçou outro coelho, conseguiu despelá-lo com mais eficiência, o assou, o comeu e na parte da tarde ela voltou a tentar se afastar da praia sem sucesso.
Era noite quando os pés dela pisaram na areia pela terceira vez.
Ann olhou para o penhasco e decidiu que era o único caminho para sair dali. Ou pelo menos parecia ser a única saída da praia. Seria penoso, mas ela tinha de tentar, então começou a escalada.
Não foi tão penoso assim, haviam vários lugares para se segurar, quase parecia que ela estava brincando na Zona Selvagem escalando o paredão.
Ela chegou ao topo, o telhado da casa era visível, indicando que ela não tinha corrido tanto quanto pareceu. Ou tinha, seu sentido de direção estava totalmente inoperante ali.
Ela deu de ombros e decidiu voltar para a casa.
De longe ela já sentia o cheiro do jantar, o estômago dela roncou novamente.
Ela abriu a porta com um estrondo, deixando bem claro que lutaria com qualquer um que se aproximasse, mas a sala estava vazia. Ela inspirou e só sentiu o cheiro da comida. Ann foi até o outro cômodo e viu que era uma sala de jantar.
E não foi só isso que ela viu. Três pares de olhos azuis idênticos a encararam. Seu captor e mais dois filhotes idênticos a ele.
Um de uns sete anos, outro de uns três. Cabelos, olhos e feições idênticas. Inclusive o olhar curioso era o mesmo. Ann notou que ele parecia diferente, ou ela não tinha lhe prestado atenção?
"Viu? Eu falei que ela viria hoje. Deve ter cansado de comer coelho, eca!"
O menor disse, o mais velho torceu os lábios e continuou arrumando pratos e talheres na mesa.
"Eu já tive de sobreviver comendo só coelhos. Eles são muito fáceis de caçar." O macho disse, o filhote mais velho voltou a torcer a boca.
"Pois eu caçaria outra coisa. Carne de coelho é enjoativa." Ele disse terminando de arrumar a mesa e se sentando numa cadeira perto de seu irmão.
"A sobrevivência fala mais alto, filho, sempre. Eu aposto que ela achou o primeiro coelho bem fofinho, mas o segundo que ela matou, isso nem passou pela cabeça dela." O macho disse, o filhote mais novo riu.
Era verdade. Tudo dentro dela clamou por sobreviver. E o primeiro coelho era realmente mais fofinho que o segundo.
"O lavabo é ali." O filhote mais velho disse quando ela estendeu mão para a travessa onde o pai dele tinha cortado a carne. Ann Sophie recolheu a mão depressa e correu para o lavabo.
Ela não se sentiu limpa, sua camisola de algodão, a mesma que usava quando foi levada estava em frangalhos.
Ela entrou no lavabo lamentando por ser apenas um lavabo, ela estava louca por um banho. Mas também estava com muita fome, então lavou bem as mãos, o rosto e molhou os cabelos, os colocando para trás do rosto.
Ela saiu, se sentou e comeu até se fartar, o macho e os filhotes falavam de matemática agora. Ela não se meteu na discussão, o macho alegava que a matemática era a prova de que existia um Deus, o filhote mais velho negava isso com alguns argumentos, o mais novo dizia que queria muito acreditar em seu pai, mas as provas que este apresentava eram rasas.
Ela, é claro, se questionava o que estava fazendo ali, o porquê dele ter a sequestrado. E por que não conseguia sentir medo dele. Ou pior, como eles não tinham cheiro.
Ela inspirava discretamente, mas não conseguia sentir o cheiro deles, era muito esquisito.
O jantar terminou, os filhotes tiraram a mesa, Ann estava se sentindo cansada, ela apenas continuou sentada à mesa.
Os filhotes se despediram do pai, o mais novo deu boa noite a ela também, o mais velho a ignorou. Eles abriram uma porta e ela viu que era o corredor dos quartos, mas só viu isso, eles passaram pela porta e a fecharam. A casa era térrea mas bem grande vista de fora, devia ter pelo menos uns...
"Você vai ficar no quarto em que estava, sozinha." O macho disse.
"Por que estou aqui? Por que me sequestrou?" Ela disse se levantando.
"Você tentou fugir, não conseguiu. O que isso te diz sobre mim?" Ele perguntou a encarando, Ann baixou os olhos.
Os olhos de Bells tinham pupila vertical e por isso erroneamente durante anos acreditaram que ele era felino, mesmo suas presas sendo mais finas e maiores. Os de seu sequestrador tinham a pupila redonda, mas eram hipnotizantes, o azul era muito intenso.
"Que você também está preso." Ela disse.
"Sim. E não só pelas plantas, mas isso é algo para outro dia."
"Como funciona?" Ela perguntou, ele se recostou contra o respaldo da cadeira e sorriu. Um sorriso muito bonito que iluminou seu rosto. As presas eram como as de Brave, um pouco menores que as dos caninos e felinos. E sim, eram mais finas. Ela se lembrou da dor que sentiu quando ele a surpreendeu no hotel.
"Doeu, não foi?"
"Sim, mas agora é só uma lembrança, eu apaguei completamente." Ele acenou com a cabeça.
"Aquelas plantas e não dá pra saber quais são, nos impedem de sair, por causarem uma confusão em nossa mente, bloqueando nosso sentido de direção. Eu e meus filhos passamos o dia as procurando, mas pode ser qualquer planta, pois não é a planta em si. Eu, quando era mais jovem, tive a brilhante idéia de arrancar tudo. Eu passei uns dois anos tentando arrancar uma árvore. Todo dia eu acordava e ia tentar derrubar a droga da árvore, mas até me render e dormir, eu não tinha nem arranhado a árvore ou o chão."
"Mas por que você começou logo por uma árvore? Não seria mais lógico arrancar arbustos, ou plantas rasteiras, ou..."
"Por que acha que seria uma planta rasteira, fácil de arrancar?" Ele perguntou, Ann piscou confusa.
"Mas depois você arrancou algum arbusto?" Ela perguntou.
"Não, eu desisti."
"Bom, eu estou aqui agora, amanhã iremos arrancar tudo o que pudermos." Ela disse voltando a se sentar e segurando nas mãos dele. Ele apertou as mãos dela antes de soltar suas mãos do agarre de Ann Sophie e se levantou. Ela tentou não admirar a pele negra brilhante dos músculos dele e falhou miseravelmente.
"Não precisa. Como eu disse é inútil. Silas tentou muitas vezes, ele é bem teimoso, mas não dá."
Silas era o filhote mais velho. O mais novo se chamava Timóteo, um nome muito estranho que Ann não conseguiu pronunciar.
"Qual é o seu nome?" Eles o chamavam de pai, ela ficou curiosa.
"Eu sou Paulo. Paul, na sua língua, pode me chamar assim."
Ann pensou nos nomes que ouviu nas cidades que visitou e não conseguiu identificar a língua original daqueles nomes. A África era uma confusão de línguas, muitos países tinham mais de uma língua oficial.
"Seu sotaque é estranho, qual é a sua língua materna?"
"Eu nasci aqui, a primeira língua que eu aprendi foi o português. Não me pergunte qual país ou região estamos, eu não sei, fui criado nesse pedaço de terra."
Português. Ela se lembrou do que leu num livro sobre a África antes de viajar. Angola, Cabo Verde, Guiné... As duas Guinés, na verdade, Bissau e... A outra. Moçambique e mais outra que ela tinha esquecido. Então ela estava num desses países! Já era alguma coisa.
"Então você fala português."
"Sim e não. Eu cresci sozinho, aprendi a falar através de vídeos que apareciam naquela tv ali. Ela não funciona mais, eu a desmontei. Depois da tv vieram os livros. Primeiro em português e depois em inglês. Eu acabei falando uma mistura das duas línguas por anos, até me mandarem livros de espanhol e francês. Eles mandaram também um toca fitas, daí eu consegui aprender melhor tanto o português quanto os outros idiomas. O português é mais confortável para mim."
"Toca fitas? O que é isso?" Ele ergueu as sobrancelhas, parecendo confuso.
"Não sabe o que é?"
"Não. E eu só vi uma tv como aquela em filmes antigos." Ela disse olhando para o aparelho.
"E quem manda as coisas?"
"Humanos armados. Eu já os ataquei, mas eles são tão fortes quanto eu e tem armas. E vêem sempre em bando. Eles não falam comigo, uma vez, Silas me ajudou no ataque, eles o machucaram na minha frente enquanto apontavam uma arma para Timóteo. Eu nunca mais os ataquei. Eles vêm, deixam as coisas na praia e se vão.
"E você já tentou fugir nadando?"
Ele sorriu, o sorriso pareceu um pouco com o sorriso de Brave, ela ainda não tinha fixado o olhar em seu rosto, os olhos dele a inquietavam demais.
"Sim. Mas depois de não sei quantos dias nadando e boiando, sem chegar a lugar nenhum, vieram de barco, me resgataram e jogaram aqui de novo."
"Isso significa que estão perto! Podemos emboscá-los da próxima vez que vierem, a gente esconde Timóteo, eu, você e Silas os atacamos. Eu sou boa, posso lidar com uns dois ao mesmo tempo."
"Pode sobreviver às balas?" Ele perguntou com ironia nos olhos azuis.
Ele lhe mostrou o braço havia uma grande cicatriz redonda como se um buraco tivesse se formado ali.
"Balas especiais?" Ela disse, seu ânimo esfriou, ela baixou os olhos.
"Eu chamo de balas. Dói demais e esses tiros foram de advertência." Ele disse mostrando um tornozelo, sua mão esquerda, o outro braço e o ombro.
Ann Sophie se levantou de novo e se despediu.
"Eu vou dormir. Amanhã conversamos mais."
"Sim. E desde já eu me desculpo pelos pesadelos." Ele disse dando as costas a ela.
"Você já se desculpou."
"Não pelos que você vai ter nessa noite." Ele disse. Estava de costas para ela, era como se falasse com Brave. Um Brave bem menos convencido, é claro. Ela riu se lembrando dele.
"O que é tão engraçado?" Ele se virou, Ann fez força para passar da atração hipnótica dos olhos azuis e o encarou.
Ela olhou bem para a boca de lábios grossos, bem feitos, com um lindo arco de cupido. O furinho no queixo, o nariz bonito, delicado, os olhos grandes, as sobrancelhas arqueadas, finas, como se ele as fizesse num salão toda quinzena.
"Seus olhos estão errados." Ann sussurrou.
"Por causa da minha cor de pele? Não sou humano, não tenho por que ter as mesmas regras hereditárias deles."
"Se você tivesse os olhos escuros poderia se passar por Brave." Era assustador a semelhança. Foi difícil ver por que ele tinha um semblante muito sério e seus olhos a distraíram.
"E o que é um brave?"
"Uma pessoa. O filhote de minha madrinha."
Ele juntou as sobrancelhas e ficou um pouco parecido com Gift, que merda era aquela?
"Um filhote? Filhote de quê?"
"Dela, filho dela, Brave. Esse é o nome dele."
"Brave é o nome dele, isso é um nome comum? Ele é um homem e é parecido comigo, é isso?"
Ann assentiu.
"Eu não sou humano, você também não é. Somos híbridos de humanos e animais, então é totalmente possível eu e outro homem que tenha a mesma espécie que eu sejamos parecidos."
Ann pensou em seu padrinho e em Harley. Eles pareciam gêmeos. Em Tio Valiant, Leaf e Lash. Em Leo e o finado Hills, os dois com calda, ainda que tinham cortado a de Hills. É, fazia sentido.
"Você conhece muitos como nós? E de que espécie você é?"
"Sim, eu conheço. Existem duas cidades cheias de Novas Espécies. A Reserva e Homeland. E eu sou felina."
Ele assentiu.
"Temos muito o que conversar, Anna."
"Meu nome é Ann Sophie."
"Me chame de Paulo e eu te chamarei de Ann." Ele disse, Ann ergueu o queixo e disse:
"Paolu."
"Não."
"Poule."
"Não." Ele sorriu.
"Boa noite, Paul, eu vou dormir." Ela estava exausta.
"Boa noite, Anna Sophia." Ele disse e seu nome dito daquela forma aberta na voz grave e baixa dele despertou algo dentro dela. Bem dentro, bem em seu interior e ela decidiu apenas ignorar.

FILHOTES - LIVRO 3Onde histórias criam vida. Descubra agora