CAPÍTULO 13

106 22 4
                                    

Anna não estava dormindo quando ele e Silas voltaram para casa. Ela tinha feito comida e a mesa estava posta, Paulo e seu filho tomaram banho e se fartaram com a carne e os legumes que ela assou.
Silas não demorou a ir para seu quarto e logo o ouviam dormir, assim como Timóteo que já dormia quando Paulo chegou.
"E então?" Anna perguntou.
"O fogo ajuda, mas apaga rápido. E eu tenho medo dele se propagar na direção daqui." Ela balançou a cabeça concordando, mas não disse nada.
"Não está cansado?" Ela perguntou, ele sorriu.
"Sim e não. Eu me sinto bem trabalhando, acho que o pior de se ficar arrancando essas plantas é a alucinação. Dá uma frustração muito grande. O esforço físico em si não é cansativo."
"Sim. Novas Espécies sentem prazer em trabalhar, em fazer esforço físico. Dizem que fomos criados assim para podermos desenvolver qualquer tipo de trabalho braçal."
"Existe trabalho que não seja braçal?" Ele perguntou e Anna o encarou. Paulo se arrependeu na hora. Ele não sabia nada do mundo exterior, Anna era como a tv quando funcionava, uma janela para um mundo totalmente desconhecido para ele.
"Sim. Com o avanço da tecnologia muitos trabalhos braçais foram abolidos com a invenção de máquinas para fazer esses ditos trabalhos."
Paulo acenou. O mundo exterior devia ser incrível.
"Você desmontou a tv. A tv foi um marco na humanidade. Depois dela, o mundo nunca mais foi o mesmo." Anna contou.
Paulo se arrependia muito de ter desmontado a tv. Ele conseguiu montar de volta, mas algumas peças sumiram. Ele já teve vontade de quebrá-la em pedacinhos, pois sua curiosidade o levou a perdê-la e ele se sentia um idiota a cada vez que a olhava.
"O que você assistia?" Anna perguntou, Paulo abriu o compartimento da tv onde o quadrado grande com a fita dentro ficava e o puxou.
Ele o passou para Anna, ela ergueu as sobrancelhas surpresa.
"Nossa! Faz tanto tempo que eu vi uma fita dessas!"
Paulo levantou a lombada mostrando a fita.
"É essa fita que contém as imagens." Ele explicou.
"Sim, eu sei. Na casa dos meus avós tem muitas dessas, meu avô é contra o avanço da 'tecnologia desnecessária', como ele chama." O sorriso que Anna deu ao falar aquilo, fez o coração de Paulo disparar. Um sorriso cheio de carinho e saudade.
"Tecnologia desnecessária?" Ele rendeu o assunto, pois queria que aquele brilho continuasse nos olhos dela.
"Sim. Vovô pertenceu a uma época em que essas fitas foram a jóia do entretenimento. Ele não vê diferença entre elas e um DVD, por exemplo."
DVD? O que seria isso? A boca de Paulo quase formulou a pergunta, mas ele não queria parecer ignorante demais.
"Ele se nega a aderir a coisas mais avançadas se o resultado for o mesmo." Ele disse torcendo para estar certo.
"Exato. Ele tem discos de vinil, fitas cassetes, caixas de som enormes. Tudo muito bem conservado e com as peças originais. E ele diz que as coisas feitas hoje em dia são descartáveis, que as de antigamente foram feitas para durar para sempre. Ele só trocou de celular quando mudaram toda a rede de analógica para digital e mesmo assim, o celular dele é pré histórico."
Anna riu, Paulo a acompanhou mesmo sem entender nada do que ela disse.
"Sua família é muito grande?"
Paulo perguntou. Ele viveu tanto tempo sozinho e só entendeu o significado de família depois que colocaram Silas e Timóteo para viverem como ele. É claro que sua família se tornou todo o cerne de sua vida, se tornou a razão de sua existência. Ele imaginava que uma família grande deixaria a vida ainda melhor.
"Sim e não." Ela disse indo se sentar no sofá. Paulo se sentou no tapete, ele gostava da sensação de ficar aos pés dela. Ela era como um anjo das ilustrações bíblicas, era natural ela estar sempre um plano acima dele.
"É grande ou não?" Ele perguntou.
"Biologicamente, minha família é pequena. Minha mãe não tem parentes, ela é de primeira geração. Meu pai é filho único, meu avô tem um irmão e esse irmão teve uma filhote, minha grande amiga Sally. Minha avó tem mais irmãos, mas destes só um teve filhos. É uma família bem pequena, comparando com a de John por exemplo."
Ele assentiu, embora ela ter pais e avós já fosse algo incrível na visão dele.
"Agora, falando afetivamente, eu sou como uma irmã para Gift, John, Brave e Bronzy. Assim como sou muito próxima da família do meu Tio Valiant e do meu Tio Vengeance."
Paulo acenou. Eram muitos nomes e muitas histórias, ele achou melhor parar de perguntar quem era quem.
Anna revirou a fita e passou a unha num adesivo que estava escuro e rasurado, tentando ler o que estava escrito.
"Mercille. Era o que estava escrito aí." Paulo informou.
"Mercille? Tem certeza?" Anna perguntou com os olhos cravados no rosto de Paulo com tanta urgência que ele se levantou e se aproximou.
"O que foi?"
"Que... Que imagens passavam aqui? Histórias? Desenhos?"
"Humanos. Homens e mulheres que me ensinaram a ler e escrever. No começo, eu não quis assistir. Na verdade, eu era bem pequeno e não prestei atenção nas lições, até que quando eu estava mais ou menos do tamanho de Silas, os humanos vieram e me obrigaram a aprender. Eu apanhei muito."
"Você disse que aprendeu a falar com essas fitas." Anna se lembrava dele falando isso.
"Não. Eu não disse isso."
"Disse sim. Você disse que aprendeu a falar através dos vídeos que passavam na tv." Ela ergueu o queixo ao dizer aquilo.
"É. Acho que eu disse. Me desculpe, eu menti. Eu aprendi a falar ouvindo os humanos. Eles tinham uma base aqui perto, achavam que eu não podia ouví-los, mas eu ouvia. Eu não falava com eles. No começo eu não prestava atenção no que passava na tv. Mas como me bateram até eu assistir tudo e aprender a ler e escrever, eu acabei dizendo que a tv me ensinou a falar."
Ela acenou, Paulo a sentia distraída.
"Dizendo para quem?" Ela perguntou dessa vez o encarando com intensidade.
"Às vezes eles vêem conversar comigo. Durante um tempo foi um humano magro e frágil, depois uma humana. Eles são diferentes dos que vêem sempre."
"Médicos. Só pode ser. Nunca te examinaram?" Ela perguntou, Paulo baixou os olhos.
"Sim. Já."
"Faz sentido. Existem muitos poucos ofídicos, não se sabe muito sobre vocês. Eles devem querer saber seu potencial, suas capacidades."
"Capacidades? Eu só tenho o veneno." Paulo contou.
"Você sempre soube exalar veneno?" Ela perguntou.
"Sim, acho que sim. Silas e Timóteo também sabem sem que eu tivesse de ensiná-los."
"Tanto minha madrinha quanto Bells não tinham veneno. Acredita-se que Bells foi picado várias vezes, ele morava na zona selvagem, por isso ficou venenoso. Minha madrinha também foi picada, mas Brave não é venenoso. Quer dizer, ele pode deixar alguém tonto, no máximo desmaiá-lo, e sua mordida e arranhões são muito doloridos, mas é só."
Paulo imaginou a madrinha de Anna. Ela sempre falava dela, contava de sua força e doçura. Será que ela seria mesmo irmã de Paulo?
"Bom, eu acho que devemos descansar. A cada dia que passa, mais aflito eu fico." Ele disse, ela assentiu.
"Só mais uma coisa. Eu ouvi um barulho de jipe quando corria tentando fugir. Acha que a tal base deles é perto daqui."
"A base a que eu me referi está vazia a muito tempo agora. Eu também sinto humanos se aproximando de tempos em tempos, mas como não consigo me orientar, não dá para seguir até o barulho."
"Eu fugi do barulho do jipe. Eu achei que aqui poderia ser uma arena de caçadas." Ela disse.
"O que é uma arena de caçadas?"
"É uma longa história, Paul. Os humanos tinham ilhas onde jogavam Novas Espécies para cacá-los. Honor filhote do Tio Valiant ficou três anos numa dessas, ou em várias, eu acho, sendo caçado."
Paulo piscou assustado. Humanos e suas perversões!
"Eu matei muitos humanos, Anna. Quando era pequeno, qualquer coisa me fazia exalar veneno e matar a todos. Eles retiravam meu veneno de uma forma muito dolorosa, mas não demorava e eu estava produzindo mais. A base, muitos morreram lá, acho que foi por isso que agora está vazia."
"Você se culpa por isso?" Ela disse se aproximando dele, Paulo descansou sua testa no topo da cabeça dela. Ele nunca tinha visto uma mulher tão alta ou tão forte quanto ela.
"Não. Eu tenho controle agora, antes eu não tinha. E sempre me machucavam muito. Quando entenderam que eu obedeceria sem apanhar, eu parei de matá-los."
"Você não deve nada a eles. Eles te prenderam e abusaram de você. Eles merecem morrer." Ela disse empurrando a cabeça dele para trás e o encarando.
"A morte é uma prerrogativa de Deus, Anna. Só ele pode usá-la como bem entender, uma vez que ele é a vida. Mas sim, matar por sobrevivência não é pecado, embora o sangue deles continue nas minhas mãos."
Ele disse, ela colou os lábios delicados nos dele, Paulo se assustou e se afastou.
"Anna..."
"Desculpa. É que eu estou muito atraída por você. Muito, demais, Paulo. Você pode sentir o meu cheiro de..." Paulo saiu da sala antes que ela terminasse de falar. É claro que ele sentia!
Ele entrou no quarto de seus filhos e se deitou com Timóteo, sorvendo o cheirinho dele como se fosse o último grama de ar disponível.
Timóteo sorriu dormindo, Paulo beijou as bochechas gordas dele e procurou se acalmar. Anna era a mulher mais inteligente, linda e bondosa que ele conheceu na vida, estar louco por ela só mostrava o ser abjeto que ele, Paulo, era.
Anna era preciosa, era uma oferenda de Deus a vida triste e feia dele, ele não devia arrastá-la para a devassidão de sua alma, de seu corpo.
Paulo custou a dormir naquela noite, mesmo depois de ouvir Anna ressonando em sua cama, ele não relaxou.
O dia amanheceu chuvoso, Paulo e seus filhos se levantaram juntos e ele sentia Anna lá fora, na chuva.
Eles se lavaram, se vestiram e quando ele foi até a janela da sala, Anna estava correndo na chuva. Silas e Timóteo saíram correndo, logo ela corria atrás deles e os três riam muito.
Paulo firmou bem seus pés no piso da sala, vê-la correndo com os cabelos molhados, usando só um lençol amarrado debaixo dos braços, lençol esse que se colava aos seios e quadris dela era demais. Se ele se aproximasse, sua besta interior tomaria o controle.
Depois de um tempo, Anna e seus filhos entraram, eles riam e falavam ao mesmo tempo, Paulo tinha conseguido tirar seus olhos dela correndo na chuva e tinha assado carne.
Ela foi até seu quarto e voltou vestindo uma camiseta dele, nem Paulo, nem seus filhos usavam camisetas, então todas estavam em bom estado. Ficava como um vestido bem curto para ela, era uma tortura evitar que seus olhos se fixassem nas pernas longas e fortes.
Eles comeram, limparam a casa e depois se sentaram num sofá de frente para a janela maior e Anna contou histórias. Paulo, sentado no chão os olhava e tentava não fazer seu coração disparar.
Os humanos iriam pegá-la em algum momento, isso era claro. Quando viessem, ele iria matar todos quantos conseguisse e isso poderia fazer com que machucassem seus filhos.
Ele apertou os lábios ante a onda de dor que lhe tomou o peito, ele não sabia se poderia se controlar quando viessem. Ele colocaria seus filhos em risco por causa de Anna? Que tipo de pai sequer cogitava isso?
"Conta alguma história dos nossos primos, Anna!" Timóteo pediu, Silas a encarou ansioso.
"Ok. Deixa eu ver..." Ela ergueu os olhos, Paulo prendeu a respiração. Como ela podia ser tão especial? E como sendo tão especial, ela poderia reparar nele, reparar no quanto o corpo e o coração de Paulo ansiavam por ela? Era impossível.

FILHOTES - LIVRO 3Onde histórias criam vida. Descubra agora