CAPÍTULO 8

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Anna se virava na cama, Paulo correu até a praia, pulou do penhasco e nadou até seus braços doerem. Não era para ela ainda estar tendo pesadelos por causa da mordida dele, mas Anna não era uma mulher comum, talvez fosse por isso que os pesadelos ainda continuassem.
A culpa o golpeou, mas tinha sido a vida de seus filhos, ele não teve escolha.
Paulo deixou uma grande onda jogá-lo na praia e ficou na areia olhando para o céu.
Se não fossem as visitas dos humanos ele seria feliz. Tudo bem que eles traziam carne, roupas e livros, mas ele poderia sobreviver com os animais que viviam ali. Ele poderia cacá-los, prendê-los e fazê-los se reproduzirem. As roupas poderiam ser descartadas, ele não tinha vergonha de sua nudez.
Ele se sentou, jogando os cabelos para trás, pensando no quanto era inútil imaginar uma vida ali com seus filhos sem os humanos. Eles o colocaram ali. Eles lhes trouxeram as mulheres para que as engravidasse. Das quatro que vieram, só Silas e Timóteo foram ficar com ele, e ele se perguntava se eles ficaram com os outros filhos dele ou se só duas engravidaram.
Ele balançou a cabeça. Não. Elas estavam no cio, ele foi pra cima delas como um animal.
Era tão horrível se lembrar daquilo! Uma delas gritou durante um bom tempo enquanto ele... Ela saberia que ele não tinha controle? Que ele estava insano? Não, é claro que não.
Ele escalou o penhasco e voltou para casa, Timóteo tinha se deitado com Anna, eles conversavam baixinho, Paulo sorriu.
"Você tem quantos anos?" Ela perguntou.
"Três. E você?"
"Em dezembro, eu completo vinte e dois."
Vinte e dois! Tão nova! Paulo suspirou e ligou o fogão. Quando a carne estava pronta, Anna, Timóteo e um Silas com a cara bem fechada apareceram e comeram com ele em silêncio. Anna estava pensativa, Paulo pedia a Deus que ela não estivesse pensando no mesmo que ele.
"Vem, Tim. Amanhã teremos um dia duro." Silas disse para Timóteo e olhou feio para Paulo, Paulo assentiu concordando.
Anna estava à mesa, ele a encarou, ela sorriu, o coração dele errou uma batida, Paulo olhou para as mãos.
"Você também pegou as outras? As mães deles? Eles te deixam ir para uma cidade e pegar uma fêmea qualquer para você..." Ela disse, os doces olhos azuis estavam duros.
Paulo balançou a cabeça negando.
"Você foi a única que..." Ele se levantou e deu as costas a ela, os olhos doces agora estavam bravos. Ele se lembrou dela caçando, dela correndo, ela era doce, mas também feroz.
"Que você sequestrou?" Ela perguntou.
"Sim."
"Por quê?"
Ele se voltou para ela, agora Anna parecia genuinamente confusa. Será que ela entenderia? Será que o veria além do monstro que ele se tornou?
"Pense, Anna. Acha que eu iria sair daqui, do lugar em que estou preso desde que me entendo por gente, deixando meus filhos e iria sequestrar você e voltar?" Ele perguntou.
"Você foi obrigado." Ela disse, ele voltou a se virar. Paulo encostou a testa na parede. Tudo nele queria tocá-la, como seria quando...
Ela lhe tocou as costas, um toque leve, mas que estremeceu todo o corpo dele.
"Tudo bem. Você foi ameaçado, não é?"
Paulo se lembrou deles batendo em Silas, de Timóteo gritando e chorando.
"Sim. Eles usaram meus filhos, Anna. Eu não pude me negar, eles foram concebidos e vivem nessa prisão por minha culpa. E mesmo que eu não fosse uma maldição na vida deles, mesmo que não estivéssemos presos, eu faria qualquer coisa para mantê-los seguros." Ele disse.
Anna se afastou, ele conseguiu clarear um pouco seus pensamentos.
"Vá dormir, Anna. Amanhã o dia será duro." Ele disse.
"O que vamos fazer amanhã?"
"Procurar as plantas que..."
"Você disse que é impossível." Ela era teimosa. Paulo se virou, ela sorriu.
"É, mas dessa vez temos de achá-las. Talvez você, por ser..."
"Felina. Mas meu faro não é grande coisa, meu pai é humano."
"Não é por que você é mulher? As outras como você tem um bom sentido de olfato?"
Ela fechou a cara.
"Está dizendo que ser fêmea me faz inferior?" Paulo riu.
"Um bom sentido de olfato faz alguém ser superior?" Ele devolveu, ela sorriu, um sorriso cheio de saudade e ele sentiu algo ruim em seu peito. Seria ciúmes? Não. Não mesmo.
"Faz. Ou não. Uma vez me disseram que Gift não era tão invisível para mim quanto era para os outros, por que eu não usava meu nariz como todos usavam, que eu usava os olhos."
Ela disse, Paulo pensou se Gift também seria uma pessoa como Brave.
"Eu não entendi."
Ela se sentou no sofá, Paulo se sentou no chão o mais distante dela possível. Suas mãos tremiam de vontade de tocá-la, ele estava meio em pânico até. As plantas não estavam exalando aquele cheiro do inferno, como ele podia estar louco para tocá-la?
"Gift é ofídico assim..."
"Gift é uma pessoa, então." Ele a interrompeu, ela riu.
"Sim. E é como você. Quer dizer, ele é híbrido. Canino-ofídico."
"Ofídico é quem é como eu?"
"Sim."
Paulo ficou pensando em Brave que Anna tinha dito que se parecia consigo. Gift também seria parecido?
"Ele também se parece comigo?"
"Não. Ele é exatamente como meu padrinho. Assim como Silas e Timóteo são parecidos com você."
"Ah. O seu padrinho é o pai dele? E vocês são parentes então?"
Ele não sabia que tipo de parentesco seria, mas ela disse 'meu' como se o tal padrinho fosse muito importante.
"Você não sabe o que significa a palavra 'padrinho'?"
Ele sorriu, feliz por mostrar a Anna que não era burro.
"Sim. Padrinho: defensor, protetor, padroeiro..."
Ele disse pensando se isso seria um título. Ele mesmo a defenderia com sua vida e tinham acabado de se conhecer.
"Você não disse o sentido religioso da palavra. Um padrinho é uma testemunha de que um filhote recebeu o batismo e o substituto dos pais na falta destes."
"Batismo? Como Jesus fazia? Mas um... Um filhote é uma criança, não é? O batismo não seria para adultos?"
"Você conhece Jesus?"
"Não, ele viveu a mais de dois mil anos atrás, foi morto, ressuscitou e está no céu. Eu conheço a história dele, mas..."
"Não se sente filho dele? Ou servo dele como algumas religiões dizem?"
Paulo assentiu.
"Você já leu a Bíblia?"
"Sim, umas três vezes. Quando eu aprendi a ler, já estava grande, do tamanho de Silas. Eu não sei quantos anos eu tenho, então me baseio neles. Eu aprendi a ler e li tudo o que eu encontrei aqui, várias vezes cada."
Ela sorriu, ele se sentiu orgulhoso por ela achar uma coisa boa ele gostar de ler.
"Acha que tudo é verdade? Acha que o mundo vai acabar?" Anna perguntou, Paulo apertou os lábios.
"Isso realmente importa? Eu não penso nisso. Eu te sequestrei. Eu... Eu engravidei mulheres, eu sou um pecador, Anna. O máximo que eu posso fazer é tentar ser bom. Mesmo sendo quem eu sou. Eu tento."
Ele disse. Era o que ele podia fazer nas circunstâncias em que vivia.
"Eu não quero tentar dormir e você falou em arrancar plantas. Me mostre onde eu posso começar." Ela disse se levantando.
"Eu sinto tanto, Anna!"
"É tão estranho você me chamar assim! Não consegue mesmo pronunciar o meu nome? Você tem um sotaque forte, mas seu inglês é fluente."
Ele conseguia, claro. Dizer Ann Sophie não era tão difícil, mas chamá-la de Anna lhe aquecia o peito. Ninguém no mundo a chamava assim, só ele.
"Você ainda não me chamou de Paulo." Ela sorriu, as presas dela eram tão bonitas! Branquinhas e discretas.
"Paaoole."
"Não."
Ela balançou a cabeça irritada.
"Como se escreve?"
"Pode me chamar de Paul, eu já disse."
"Paul. Ok. Os nomes dos seus filhotes são nomes bíblicos, não é?"
Paulo sentiu a graça do pequeno momento brincando com ela se dissolver.
"Sim. Silas e Timóteo foram discípulos de Paulo de Tarso."
"Ah. Eu gosto dos nomes deles."
Ela não pronunciava os nomes dos filhos dele direito. Silas, era algo estranho, ela falava Sailus. Timóteo, ela chamava Timoti. Seus filhos riam dela, ela ria com eles.
Risos. Ela os trouxe com seu olhar doce, sua postura erguida, poderosa e sua aparência de anjo.
Ele, porém sabia que dali a pouco os risos iriam embora. Haveria gritos e choro ecoando por aquelas paredes.
"Vem, eu também não vou dormir."
Paulo disse e saiu, ela o seguiu. Ela vestia uma camiseta dele e só, Paulo pensou em mandá-la ir arrancar algo bem longe dele, mas aquilo era sério.
Ele foi até o meio do jardim, parou e indicou uma roseira a ela.
"Arranque essa. Cuidado com os espinhos."
"Essa? Tem certeza?" Anna perguntou, com certeza ela estava com dó da roseira cheia de rosas vermelhas.
"Sim. Confie em mim." Paulo disse, mas as palavras soaram vazias. Ela não podia confiar nele. Não dali a alguns dias.
"Tá." Ela disse e parou. Os olhos dela se fecharam e ela ficou imóvel. Paulo não precisa ver dentro da cabeça dela para saber que ela estava presa numa ilusão onde ela arrancava a roseira.
"Anna." Ele a sacudiu, ela abriu os olhos, depois os arregalou.
"O que aconteceu?" Ela perguntou, Paulo tocou no queixo delicado o colocando na direção da roseira.
"Mas! Eu arranquei! Eu machuquei meu..." Ela começou a examinar as mãos.
"Viu? Não é tão fácil arrancar qualquer planta aqui. Existe algo que todas exalam que nos impede de ficar conscientes próximos delas."
Ela foi até a roseira com uma ânsia no olhar, uma raiva, mas acabou caindo no chão. Paulo se sentou na terra e colocou a cabeça de Anna sobre o colo. Novamente ela abriu os olhos e depois os arregalou.
"Isso é muito esquisito!" Ela disse.
"Sim. Eu sei."
"Por que Silas disse que o dia seria duro, se é impossível arrancar uma planta desse inferno de lugar?"
"Não é impossível. Depois de algumas vezes, nossa mente começa a reconhecer o padrão alucinógeno que envolve a planta e aí é possível se aproximar. Dura horas até dar certo, mas é possível."
Ele não disse que esse escudo alucinógeno estava em todas as plantas, as que exalavam a substância e as que não. Não dava para saber se a pequena árvore que levou um dia para ser derrubada seria uma planta que exalava as substâncias ou não.
"Agora somos quatro. Amanhã iremos com tudo pra cima dessas plantas do demônio."
"Ei! Demônios existem! Não chame nenhum deles para cá, por favor."
Ela assentiu. O sorriso foi cheio de condescendência, ela não devia acreditar em Satanás e seus demônios, ele não tinha por que discutir isso com ela.
"Amanhã voltamos aqui, Anna. Eu vou te fazer dormir." Ele disse, estendeu sua mão, Anna a segurou.
E os passos até a casa pareciam soar no peito de Paulo. A mão dela, menor que a dele era calosa. Não como a dele, mas não era uma mão macia.
Tudo nela evocava energia, luz do sol, sorrisos e alegria. Os olhos lembravam os céus, os cabelos o ouro. E Paulo sentiu medo. Ele inspirou o mais profundamente que conseguiu, não havia nenhum cheiro diferente.
Ele a faria dormir e quando o sol se levantasse, ele iria para a caverna do precipício. Lá Silas o amarraria e Anna ficaria segura.
Ele e Anna foram direto para o quarto dela, Anna se deitou e cheirou o lençol.
"Por que eu não sinto o seu cheiro?"
"Só quando meu instinto ficar em paz próximo a você é que você sentirá meu cheiro e o dos meus filhos."
"Por que acha que eu estaria aqui? Eles disseram alguma coisa quando te mandaram me buscar?"
"Não. Eu também posso não ter ouvido direito, eu só conseguia segurar a vontade de matar todos. Eles bateram no meu filho."
"Eu sinto muito."
"Não é culpa sua. A culpa é deles. Eu marquei o rosto de cada um, um dia eu vou vingar o que fizeram com Silas."
"Se eu ainda estiver aqui, eu te ajudo." Paulo sorriu. Ele não duvidava que ela lutaria com aqueles humanos. Ela era alta e forte.
"Obrigado. Mesmo." Paulo agradeceu, Anna se deitou.
"Se eu estiver bem próximo posso te acordar. É o que dá pra fazer."
"Tudo bem." Ela disse lhe dando espaço na cama, Paulo se deitou.
"Feche os olhos, Anjo. Durma e amanhã quando o sol estiver alto, acorde, feliz e bem disposta."
"Sim, obrigada." Anna disse, fechou os olhos e logo dormia.
Paulo se lembrou da lancha, do pano preto na cabeça. De todos os segundos que ele contou, tentando localizar aquele lugar.
Eles ancoraram, Paulo foi levado até a parte de trás do prédio.
"Sinta, idiota. Você sente muitos ratos e predadores pequenos?" Um dos humanos perguntou, Paulo não quis responder.
Um cheiro delicioso tinha despertado algo nele, um instinto desconhecido. O cheiro o chamava, ele tentou olhar em volta, tentar se localizar saber onde estava, mas o cheiro o cegou. Só havia o cheiro.
"Está sentindo um cheiro diferente? De uma mulher que não cheira como os outros?" Outro humano perguntou, Paulo fez que sim com a cabeça. Tudo em seu ser clamava para matar aqueles humanos e seria tão simples! Era só se concentrar, sentir o veneno sendo produzido em seu pescoço e não o impedir. E aí começar a suar. Ele tinha muito controle de seu corpo. Era só aumentar a temperatura, o corpo começaria a suar e o veneno se espalharia no ambiente. Matando todos que o respirassem.
Mas e Silas e Timóteo? Ele não podia. A fonte daquele cheiro também poderia ser atingida. Pessoas inocentes também.
Paulo tinha olhado para o humano, o humano o mandou trazer a mulher, a fonte do cheiro. Paulo obedeceu, era o que ele também queria.
Uma onda de culpa o tomou ao se lembrar disso, Paulo alisou o rosto bonito bem de leve para não a acordar. Ela estar ali era culpa dele. Mais uma pessoa presa naquele inferno por culpa dele.
"Desculpa, Anjo." Ele disse baixinho.
Foi tão fácil pegá-la! Ele estava só de cueca, como lhe disseram que chamava aquilo. Era uma calça minúscula, apertada, que só tapava seu membro e a bunda. Era de cor preta, Paulo só teve de ficar nas sombras, havia muitas sombras ali, pois havia muita luz. Não precisava ser muito escuro, desde que fosse uma sombra, ele podia ficar a frente de qualquer um que o humano não o via.
Ele passou por uma entrada cheia de gente, ninguém o viu. Quando foi para as escadas ele subiu correndo, o corredor do quarto dela não estava muito iluminado. Haviam três homens guardando a porta e eles cheiravam como os humanos que o trouxeram ali. Eles enxergavam muito bem, não precisavam de muita luz e isso o ajudou. Paulo andou pelo corredor encostado na parede, havia uma janela no fim deste e ele saiu do prédio por ela. Os humanos não o viram. Foi só socar a parede em alguns lugares e se segurar, logo ele pousava na varanda atrás dela que também não o viu. Ele a mordeu, pulou para o chão e voltou para os humanos.
E agora, depois de voltar na mesma lancha com o mesmo pano preto sobre sua cabeça, Anna estava ali. Dormindo, calma.
Os cabelos se espalhavam sobre o travesseiro como raios de sol no verão, sua pele o lembrava da textura das pétalas de uma rosa que crescia na parte sul do jardim. Uma rosa branca.
Paulo fechou os olhos. No dia seguinte, com cheiro ou não, ele iria para a caverna. Não podia colocar Anna em risco. Ele se tornaria um animal incontrolável dali a pouco tempo, estar ali perto dela, mesmo sem influência externa nenhuma, o fazia querer sentir-lhe a pele, chupar os lábios, lamber aquele corpo, coisas que nunca tinha feito. De onde vinha a vontade de fazer aquelas coisas deploráveis, vergonhosas? Por que queria saber o gosto dos lábios dela, o gosto do sexo dela?
Paulo se levantou de um salto. O animal que o tomava estava ganhando a batalha, ele estava ficando louco.
Pensar que ela ficaria muito assustada se ele lhe lambesse os seios, por...
Paulo começou a correr. Alguns animais tomavam leite pelo seio de suas mães, Silas tentou mamar nos mamilos dele uma vez, quando era um bebezinho. Ele correu sem direção e como sempre foi parar na praia. Era melhor assim, ele tinha de ficar longe dela. Sua mente estava falhando, seu juízo também.

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