Descuidam-se as flores da varanda da casa vizinha à casa de minha avó. Descuidam-se como os carvalhos escuros ao auge do outono, ou como os morcegos que vivem nos carvalhos escuros. É triste e linda a semelhança entre as flores e os carvalhos escuros, especialmente ao outono.
Às vésperas do aniversário do Gael, meu afilhado - dia dois ou três de julho foi quando nasceu, há dois ou três anos. Veio à minha casa ontem, está esperto como nunca antes. Já sabe dizer Flu, o fiz dizer para que pudesse pegar meu headphone - disse três ou quatro vezes.
– Fu?
– Fu.
– Fu! – gargalhou.
Ainda não consegue dizer o L muito bem, mas já é um progresso. Até as vésperas de seu outro aniversário irá conseguir pronunciar Fluminense sem nem pestanejar, certamente. Fluminense - time de um dos meus avôs e de boa parte da parte boa da família.
Ainda é inverno, há muito frio pelo interior do Rio de Janeiro - gosto disto. Traz-me sensação de desespero o calor do verão do Rio de Janeiro, e sem contar das chuvas de verão, sempre tive muito problema com elas, e desde que comecei a trabalhar, sempre têm caído no exato momento em que volto para casa - volto a pé. Uma hora e pouquinho de caminhada, às vezes mais, às vezes mais, às vezes mais... Sempre andei - ou caminhei - mais devagar do que o usual, exceto quando na presença de meu padrinho, que parece apostar corrida ao andar na rua - é fácil de se perder dele ao andar devagar, de cabeça já lembro-me de duas vezes.
Andava mais devagar do que o usual, mas nada além do normal - hoje prefiro andar bastante devagar, principalmente além do normal. Não tenho muitas conclusões sobre a escolha, apenas gosto de andar devagar - calmo, na minha. Volto do trabalho ouvindo João Gilberto, mas as vezes troco para Daniel Caesar, que é para não perder o costume. Nunca fui tão calmo andando na rua: atravessando as ruas, passando pelos carros, dando passagem às pessoas. Tenho andado sempre pelo lado de fora da calçada, que é para que algum idoso ou criança não corra tanto risco de ser atropelado quanto eu - gosto de preservar o zelo pelos idosos e pelas crianças.
Tem sido libertador andar devagar, tem sido libertador ter tempo para observar a rua, tem sido libertador dar passagem para todas as pessoas tomarem minha frente e seguir seus caminhos - é lindo poder observar que cada pessoa que me toma a frente tem sua vida e suas situações. Cada um tem seus problemas para lidar, certamente a maioria deve lidar de melhor maneira do que eu, mas não andam como eu - ninguém havia andado tão calmo, tranquilo, sem se preocupar com seus problemas, apenas na sua, importando-se apenas com o caminhar como eu, até o dia de hoje - encontrei um senhor de uns quarenta anos andando assim ao voltar do trabalho, usava a blusa da usina. Caminhava quase tão lento quanto eu, mas não aparentava ter problemas de saúde que implicassem no seu caminhar. Fiquei próximo a ele por uns cinco minutos, até que - de súbito - entrou em uma lojinha ou lanchonete - não se dá certeza. Andava com as duas alças da mochila presas sobre os ombros, como eu. Carregava cada mão por dentro de cada bolso da parte de frente da calça jeans, como eu - deixava somente o dedão de cada mão para fora de cada bolso, como eu. Seu caminhar era um pouco mais devagar do que o meu, reduzi-me à minha insignificância e acompanhei o andar dele, mas não foi de todo sacrifício – estava calmo, na minha. Hoje tenho a singela impressão de que meu caminhar seja um pouco mais devagar que o dele - quanto mais devagar melhor, que é para se ter mais tempo para observar.
Observo a rua: os pais e mães buscando os filhos na escola, os policiais fazendo vigia, os operários voltando da usina, as crianças mais velhas que voltam já sem os pais à casa, os funcionários fechando as lojas, o ponto de ônibus lotado, os expositores vazios ou quase vazios das lanchonetes, o destaque das cores dos semáforos. Observo os carros impacientes com o sinal vermelho, nunca agradeci tanto ao sinal vermelho dos pedestres, traz-me tempo para observar com maior atenção as movimentações, situações, encontros e desencontros das ruas.
Observo também as lembranças olfativas, tenho notado que elas possuem cada uma sua própria cor. Dentre as cores que já consegui identificar estão: o cinza claro das nuvens de poeira que vem da usina(mas não o mesmo cinza das neblinas, um pouco mais escuro), o preto acinzentado da fumaça que sai dos escapamentos dos carros, o amarelo alaranjado do cheiro dos últimos pães da padaria - que acabaram de sair, o cheiro verde de algumas árvores e o cheiro marrom alaranjado com roxo de terra de outras árvores - o cheiro de terra também me soa como algo arroxado por conta das beterrabas, e me soa como algo alaranjado por conta das cenouras - mas rechaço, não se dá certeza sobre o cheiro das árvores. Não se dá certeza porque vai de cada um, alguns sentirão o verde das folhas, outros sentirão o marrom claro dos ninhos das aves, outros irão sentir um cheiro amarelo e amarronzado por conta das batatas - já outros irão sentir o roxo, seja por conta das beterrabas, por conta das batatas-doces ou por conta de ambos. Não se dá certeza - vai de cada um.
Tenho sido questionado cada vez mais sobre o motivo pelo qual tenho voltado a pé para casa - não procuro me aprofundar muito no assunto. Busco apenas respostas rápidas, que é para suspender o silêncio, sanar a dúvida e evitar quaisquer outras perguntas - minha bateria social tem se esvaído cada vez mais com a vida adulta. Apenas digo que o ônibus das dezoito horas vem sempre muito lotado e que, portanto, prefiro vir a pé a enfrentar o ônibus lotado, ou digo que perdi o ônibus, ou que estava demorando - tudo isto é mentira. Venho a pé por que gosto de vir a pé - calmo, na minha -, gosto de observar a noite.
Ainda é inverno e ainda há muito frio no interior do Rio de Janeiro, mas já se dá conta da semelhança entre as flores e os carvalhos escuros, especialmente ao outono. Ora, as flores descuidam-se ao se contentarem com o abatimento que pede a estação do ano, murcham e se encolhem - algumas morrem até. Deixam de abastecer as abelhas e os beija-flores, deixam de abastecer a paisagem da varanda vizinha à casa de minha avó - descuidam-se. Com os carvalhos escuros não é muito diferente, também se
contentam com o abatimento que pede o outono, e, portanto, ficam desprotegidos à caída das folhas secas - as folhas do carvalho escuro não murcham, porém - apenas secam e caem. Deixam de abastecer as aves e morcegos que estabelecem abrigo por entre os galhos e folhas, deixam de abastecer a varanda de minha avó.É triste e linda a semelhança entre as flores e os carvalhos escuros.