Faz-se clara a dívida que ainda tenho com o passado, mas não procuro lidar com isso – não agora ao menos. Passado. Tenho algumas poucas coisas a resolver ainda com ele, algumas desejáveis até, mas que serão, daqui a pouco, esquecidas por mim – por preguiça, por medo, ou por hábito, mas serão esquecidas. O passado, a morte dele: a morte do frágil, o velório da infância, o sepultamento da inocência, o mais tardar da vida, e o sepultamento da mesma, só que mais tarde. Mais tarde porque agora tenho de ir ver coisas, tenho de escrever coisas, de contar coisas, de cantar coisas – mais tarde, insisto: tem de ser mais tarde, quando, ao tardar da idade e ao nascimento da maturidade, ser-me imposto, por mim ou pela pressão social que:
– Busque teu caminho, homem!
Ou que:
– Você tem que decidir o que quer da vida!
Homem não hoje, menino – homem mais tarde, entretanto. Vida não, deixará de ser vida no exato instante em que eu deixar de ser menino – mais tarde. Porém salvo aqui algumas ressalvas, porque sei que mais tarde – quando reatar ou desatar de vez com o passado – haverei de ser homem. Na minha tamanha ingenuidade e talvez pequena e genuína pretensão de ser algo, ou representar algo, sei que daqui do meu canto, que só um homem – maturo de vida e conhecedor de si – pode de fato, reatar com o passado. Entretanto este não é o pensamento, nem o momento: isto que faço é viver o hoje. Ora, tenho de resolver o passado, mas tenho de ir ver coisas – verei hoje, a exemplo, o nascimento de uma nova vida, e como são lindos os nascimentos!
Verei e virei contar, deixo aqui a palavra. Verei, daqui a pouco, os primeiros passos – ou batidas de asa – da borboletinha que nascerá aqui, no fundo do meu quintal.
Tarde, tudo é sempre tarde, a beleza também está no tardar, entretanto. Tardo a escrever sobre o passado e sobre o futuro, deixo para mais tarde. Aqui e agora, somente as circunstancias do presente: encontro-me no desencontro da maioria das coisas que acontecem ou vem acontecendo, mas não desencontro-me de mim, enfim – desencontrar não é para agora, agora é hora de ir ver coisas. Desencontro-me mais tarde, junto com o desencontro que virá a ser o encontro que terei no futuro, com o passado. Somente as circunstâncias do presente: hoje faz sol, mas entre nuvens. Teve aula, teve estágio, teve dores de cabeça, e como todo dia comum, teve as situações dos dias comuns. Hoje, é mais um dia comum, mas eu não deixaria que assim fosse, ou que assim aparentasse ser: me atentaria aos detalhes e traçaria sobre eles a beleza do dia. Mas hoje, leitor, peço perdão – não me reduzirei aos detalhes. Nem precisarei, entretanto, porque agora, à minha frente, nasce uma vida: é chegada a hora.
Nasce a pureza de não só uma vida, mais de uma nova vida – nasce a nova fase da – agora – borboleta, e agora o dia não haverá de ser como outro qualquer, ou como outrora parecia ser.
Nasce a nova vida. A borboleta que nasce deixa para trás tudo aquilo que um dia lhe foi conveniente e tudo aquilo que lhe foi inconveniente também. Deixa para trás, em suma, o passado. Se esquece de tudo, e não faz sequer lampejos de ter vontade de lembrar – sua confiança me assusta. Segue seu caminho, bate as asas: uma, duas, três vezes. Quase cai de primeira. De segunda, quase cai também. Mas foi caindo que aprendeu, e que agora suspendeu à minha companhia e ao mundo a sua nova forma. Não sabe de nada, nem do que fazer, nem com quem fazer, nem se faz ou se não faz. Carrega agora, o puro ímpeto da maior dádiva que a nós – eu e ela – poderia ser submetida: a ignorância. O dom de não saber – e por conseguinte não se preocupar – com nada. A virtude do desconhecido, a inocência da criança que um dia foi adulto, mas que não sabe disso – isso sequer importa agora. Há de importar a nova vida, e somente isto. Nem para mais tarde ficará o passado para ela, viverá somente do futuro e dos frutos dele.
Vai agora, voar o mundo. Desfrutar da infância, cascar a liberdade, afogar-se nas águas do desconhecido, conhecer seu destino e viver, para todo o sempre, porque para ela, como para mim, a vida faz-se eterna, quando se vive – ao menos que por um dia somente – na ignorância. A ignorância genuína, aquela que se descobre quando é criança, e que se encobre quando começa a descobrir a vida – descobrir a vida de homem, não de menino. Ignorância inocente e pura de tão singela, não a ignorância conhecida e embasada – pelos miolos de uma cabeça pequena – daquele que diz, entre ressoantes julgamentos e palavras descabidas:
– Você tem que decidir o que quer da vida!
Voa o mundo, alça os voos da verdadeira paz, se desprende, desprende e desprende. Não cogita nem olhar para trás: voe borboleta, eterna borboleta.
Vá voar os ventos do seu futuro, enquanto eu fico aqui adiando a conversa com o meu passado. Borboleta tem vida eterna porque assim é com as borboletas, e não precisa (nem tente) olhar para trás, nem para o lado, borboleta: voe apenas para cima e para frente, se esqueça de tudo que houve, preocupe-se apenas com o que virá a acontecer e, depois que acontecer, despreocupe-se com isto também.
Vá voar, enquanto fico aqui adiando a conversa com o meu passado. O meu passado virá, no futuro, mas agora não é futuro, e se o futuro é o passado para mim, dona borboleta, vou deixar para mais tarde.
Ainda tenho de ir ver coisas, tenho de escrever coisas, de contar coisas, de cantar coisas. O passado ficará – como o futuro – para mais tarde.
Quereria eu poder ser como uma borboleta.