Ele sai sempre às cinco e alguma coisa, tranca o portão de casa com as chaves e o cadeado, destranca a bicicleta do cadeado e vai atrás do mundo, temer a vida que tem. Sai às cinco e pouquinho e não se sabe quando volta, nem se volta cedo ou tarde, mas sabe-se que volta – no fim, sempre volta. Calado ou falante, alegre ou triste, abatido ou imparável, vivo ou morto de si, mas volta, tem de voltar. Ai dele, se não voltar!
Sai sempre às cinco, e assim tem de ser, porque senão assim, não conseguiria ter o pouco de tempo que lhe resta e nem ser o pai que é. Carrega sobre as costas três filhos: o desespero, o medo e a resiliência. Dos três o terceiro é o mais valioso, certamente. Mas, não fosse ele, não teria acontecido o que acontece agora.
Sai às cinco, não fosse assim perdia o tempo de ir de bicicleta para economizar o dinheiro da passagem, temido tempo! Talvez não tema a vida que tem, entretanto. Mas certamente teme continuar sendo esta a sua vida. Economiza o dinheiro, mas não economiza na educação – até mesmo às cinco e pouquinha – diz-me bom dia, ou pelo menos tenta dizer:
– B-om di... tudo joia?
Digo que sim, até mesmo porque outro dia tive escrito em "notas" que uma das definições do chato é dizer que não está bem depois do "tudo bem" ou do "tudo joia", ou "tudo bom", ou do tudo-tudo, em suma – chato é também aquele que vive – ou sobrevive – de reclamações, ou que subordina a presença dos outros ao rancor miserável do mundo dos chatos, à imensidão do lugar onde deve-se perguntar:
– Péssimo dia, tudo ruim?
E onde deve-se responder (isto se houver resposta):
– Ruim não, desastrosamente horrível! – E com você?
Mas como dentre as definições do chato também se estende a prolixidade, ou o dom – e tumor – de se estender nas palavras, volto à instância do atual momento – veja: sou chato, mas aceitar a chancela seria derrota, e derrota é coisa de chato.
O homem segue o seu caminho, ou tenta seguir – o caminho diário: subir as escadas, trancar o portão, destrancar a bicicleta e suspender ao mundo a sua vida, temer – em suma – que ela assim continue sendo. Tenta seguir o caminho, veja: consegue trancar o portão com as chaves, mas o cadeado dá problema. Tenta trancar novamente, e depois de tentar novamente, tenta mais uma vez – lembra-se de seu primeiro filho, o primogênito e por conseguinte, o mais caótico e trabalhoso: desespero. Desespera-se com as chaves então, deixa a chave da bicicleta se soltar, desprende-se do molho de chaves, que cai ao chão assim que o homem tenta – mais uma vez – abrir o cadeado.
Todo bom pai aprende lições junto com os filhos e por isso, não vai pegar agora a chave que caiu, só irá fazê-lo depois de conseguir trancar o cadeado: resiliência. O bom pai também lembra-se dos filhos, e com este não poderia ser diferente: lembra-se do medo. E por lembrar do medo, lembra-se do medo de chegar atrasado, mas não se esquece da resiliência, e então, no meio do desespero, lembra-se do desespero e toma sua decisão: cobre o relógio com as mangas da camisa, por ter medo do horário, e continua a tentar trancar o cadeado, por resiliência. Mas age como desesperado, e sequer para de tremer enquanto ainda tenta trancar o cadeado.
O homem desiste, deixa de ser resiliente quando desiste, mas nem pensa nisso. O horário passou, o desespero – mais uma vez – bateu, deixou largado o portão lá, foi até o ponto de ônibus e partiu rumo à derrota que é viver no mundo dos derrotados. Foi-se embora, partiu rumo à batalha desconhecida, onde não se sabe ao certo se voltará com vida ou sem, no sentido figurativo ou até mesmo no literal, mas partiu. Foi-se embora e levou junto de si o desespero e a pressa que coube no momento, mas não levou as chaves que deixou cair, nem a bicicleta: não ia dar tempo.
Ah tempo, temido tempo! Eu voltaria para dizer ao homem que a chave que caiu era a chave do cadeado, mas isto se houvesse tempo de ficar lá observando, de perto, dando pitacos à vida alheia por frases ditas, ao invés de dar pitacos à vida alheia por parágrafos de diagramações questionáveis.
Temido tempo!