Para Não Dizer Que Não Falei do Sol | #24

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Resplandece e é bastante genuína a saudade que habita e prevalece entre o singelo adeus da madrugada e o começo das manhãs. O homem pode agora – como em outrora, quando fora feliz(pela manhã) – descansar no canto dos bem-te-vi e se bastar no singelo e absoluto toque do sol, na maior verdade que há no voo das borboletas pela manhã e na imensa alegria e felicidade do dia. Felicidade essa, bastante justa e suficiente, que diz ao homem – com o canto das aves e com a vida do sol – que tudo o que lhe for submetido no dia, será feliz e contagiante. E haverá vida quando for feliz e contagiante!

O relógio da vida – quando pela manhã – sempre – compelido e verossímil – se suspende e acolhe o homem, com o assíduo descompromisso com os problemas. O diz – também com o canto das aves, mas sobretudo com o cheiro quente do café recém passado – que não importa muito bem que horas são e que horas serão daqui a algumas horas, já que – como é manhã – o homem ainda tem uma quantidade de horas muito considerável para que lhe possa ser subserviente de qualquer desejo e prazer momentâneo ou qualquer compromisso passageiro, à medida de que a única coisa (se é que isto é uma coisa) que realmente importa, se transfaz na única coisa que no momento não é passageira nem momentânea para o homem: o sol. Ao homem resta residir na vida e na felicidade que há no sol, e, sobre ele, fazer tudo aquilo que lhe apetecer: escrever, ler, caminhar, jogar, comer, andar, trabalhar...

Para o homem tudo será feliz enquanto houver sol, e sem quaisquer ressalvas assim rechaço que seja. Ora, do que nos resta a felicidade na vida, quando não há a vida do sol para iluminar e resplandecer a verdade que há na felicidade da nossa vida?

Com o destempero e peculiar dom de me dar ao luxo de fazer somente coisas ignorantes(se é que isto são coisas), me deixo levar e caminho em direção ao sol. Sem muito saber, e por isso sendo ignorante o faço, à medida de que o que realmente importa é o sol. Com muito o que aprender mas sem muita vontade de querer saber do que se trata, porquê agora é manhã e – como escrito pelo próprio que vos escreve – ainda não é hora de se importar, ainda resta-me uma razoável quantidade de horas para as importâncias baratas do cotidiano – é hora de seguir o sol.

De súbito, desejo fazer uma pausa e sento na primeira padoca que me apetece, porquê – como bem escrito acima – dia de sol é dia de fazer o que apetecer. Numa mesa à cinco ou seis passos da minha senta uma senhorinha muito amável e delicada. Suas vestes, como a que vestissem uma dessas bonecas de grife, reluzindo o brilho que há no seu olhar, reluz de fronte e quase que imediatamente – e incessantemente – o brilho que há no sol de hoje, na vida do sol de hoje... pois bem, chegam duas crianças à mesa para sentar-se com a nossa amável e doce senhorinha. Não devemos nos enganar com a falsa modéstia entretanto, leitores – rechaço. Em qualquer outro dia ou por qualquer outro momento de qualquer outro dia, de certo que estaríamos a tratar somente dos pais da nossa querida mocinha, mas hoje – como tem bastante sol e bastante vida – os dois, felizes e afagáveis, transparecendo a felicidade adequada à ocasião, se reduzem tão somente a isto(se é que isto é isto): duas crianças. Felizes e afagáveis, inocentes e caridosas, voláteis e despretensiosas, eis ali as duas, carregando e transparecendo a despretensão que somente duas crianças - inocentes e caridosas - poderiam transparecer. Chegam despretensiosos, e, sem muito o que dizer, sorriem mais uma vez. Sorriem verossimilmente cercados e completamente capturados e subservientes do doce sorriso da nossa senhorinha, entretanto.

 Sorriem verossimilmente cercados e completamente capturados e subservientes do doce sorriso da nossa senhorinha, entretanto

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Dia de sol há de ter bastante disto também: sorrisos. Compelidos e quietos, afagáveis e confortantes ou imbatíveis e inocentes, não há de importar, mas há de ter – dia de sol, é também dia de sorrir.

Ainda com o sorriso no rosto, uma das crianças tenta disfarçar as pretensões da mocinha e diz, sussurrando para a outra criança:

– Vai lá. – ergue a cabeça.

– Com o garçom? – pergunta a outra criança.

E então vem o garçom, por de trás da menina, como a quem quisesse fazer surpresa ao vir, como a quem não pudesse ser visto pela mocinha – pobre homem, acha mesmo que nossa senhorinha deixaria de sorrir para as crianças por um instante sequer, para desviar-lhe algum modesto olhar por algum instante raso que seja.

Começa de fundo as chegadas: a outra garçonete, o cozinheiro, o gerente da padoca. Todas as luzes se apagam, de modo que só o brilho do sol e o brilho do olhar da nossa senhorinha reluzam o ambiente. O garçom serve o bolo à mesa e, sorrindo para nossa mocinha, ascende as velas do seu oitavo ou nono aniversário – está escuro e por isso ainda não se dá certeza dos anos da nossa doce mocinha.

As palmas, como a que viessem como o sol para festejar este dia começam, e com o acender das luzes da padoca, se esvaem com o escuro e residem, agora, apenas na saudade. As palmas - que também residem na saudade - foram embora com a ausência do escuro. Agora, que só nos resta a saudade das palmas e a ausência do escuro, nos resta também a claridade, que nos anuncia - quase que despretensiosamente - que os anos da mocinha há pouco aclamados e festejados, são de fato oito. Resta, agora, somente a senhorinha e as duas crianças, sentadas à cinco ou seis passos da minha mesa. Uma das crianças, como a quem sorri a felicidade que há no sorriso da mocinha diz:

– Assopra filha, pode assoprar!

– Antes faz um desejo. – pede a outra criança.

Que desejo? Não sabemos, nem ninguém.  Não há de importar, entretanto. A única coisa que sabemos é que assim são os dias de sol: brilho, vida, festas, sorrisos e cantigas das aves. E a única coisa que há de importar é que, agora, - com os três indo embora – a mocinha vai poder reluzir e reduzir de perto seu brilho ao brilho da vida que há no sol.

E que vida linda há no sol, quanta gentileza ser subserviente deste! Não é de certo saber o que exatamente Geraldo Vandré quis falar das flores, mas já que o mesmo não o fez pelo sol venho aqui – encarecidamente e, carente de mais dias de sol como este, escrever mais uma singela página, e com pouquíssima pretensão.

Mas de certo, senhores, que para não dizer que não falei do sol, eis aqui mais um registro da vida que há nas manhãs de sol, e quanta vida há nas manhãs de sol!

Para não dizer que não falei do sol. Eis tudo.

 Eis tudo

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𝙸𝚗𝚝𝚒𝚖𝚒𝚍𝚊𝚍𝚎Onde histórias criam vida. Descubra agora