O Menino e a Chuva | #20

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O menino caminha a passos curtos, mas a pensamentos largos. Lê a mesma linha uma, duas, três ou até quatro vezes se preciso for, mas continua a caminhar – passos curtos, sobre a chuva que cai sobre o seu guarda-chuva e sobre a tempestade de ideias que cai sobre os seus pensamentos. As ideias são várias, mas talvez sejam tão fúteis quanto o guarda-chuva, que a ele de nada serve debaixo dessa chuva – pensa até mesmo em esquecê-lo. Esquece de pensar na tempestade de ideias quando pensa no guarda-chuva e então desfaz-se dele, agora somente duas coisas importam: a chuva e a tempestade de ideias.

Do outro lado da rua, observa uma madame de jaqueta branca e botas caramelo – de certo requinte, de péssimo gosto quando se trata de roupas, mas engraçada. Como é bonita, pode vestir o que a ela convir, que fica engraçada. O menino observa a madame, que não tem guarda-chuva nem nada, que – compelida e quieta – espera, debaixo da marquise, o recomeço acabar, para poder voltar à vida. Sair da marquise, mergulhar de volta na zona de conforto, andar sobre os pensamentos automáticos do cotidiano... a madame espera o motorista chegar ou a chuva passar, mas espera. É dia de chuva e, por conseguinte, de recomeço, e quando é dia de recomeço, é também dia de esperar.

As ideias são várias, mas agora o menino concentra-se no livro molhado. Vira lama com a chuva, se despedaça por inteiro. Não consegue mais entender sequer alguma linha, ou ler sequer uma vez alguma linha que outrora tenha lido, não há mais nenhuma linha para ler ou pensar. É como a chuva, como o recomeço, como sair da zona de conforto, como ficar espremido na marquise, esgueirar-se no silêncio absoluto da autorreflexão, mergulhar no novo eu lírico e escrever novas páginas, tanto com a caneta quanto com as atitudes – temos todos de encarar assim. Dali, com a bermuda encharcada e com os ténis afundados em lama, só resta ver o copo meio cheio. E que copo cheio, cheio de água de chuva!

Um louco na chuva, todos regozijariam a imaginar. Um indecente, descabido, maluco, abandonado. Um pouco de cada coisa, eis ali o sozinho escritor, o mais novo menino do mundo – um progenitor de meias verdades disseminando falsas promessas: recomeçar e reinventar. Um pedinte de desculpas sinceras, apreciador de histórias escritas e de histórias faladas, inventadas ou não, porém bem redigidas – eis ali. Mais um narcisista das pequenas diferenças, mais um narcisista das próprias histórias, que insiste em falar de si, e quando não há nada a falar, insiste em inventar algo a falar. Um pensador sozinho que partilha os pensamentos, que anda sozinho na chuva, mas que entende a circunstância do momento. Um pensador de baixo canhão, mas de algum certo receio de escrever algo que não seja tão útil. Um pensador baixo, pequeno – que às vezes consegue imprimir os pensamentos em alguns parágrafos, mas que na maioria das vezes não consegue – ainda é menino. Um reclamador insensato, mas esperançoso, que anda na chuva sem qualquer motivo aparente. Que transforma a chuva no motivo do dia, que transforma o motivo do dia em algo para se ler. Que lê como ninguém o motivo do dia, que nem precisa ler duas ou três vezes para entender. Lê as pessoas, as circunstâncias dos momentos e os momentos das pessoas, mas que pensa baixo, que esquece que o guarda-chuva protegia o livro, por ser descabido como todos regozijariam ou pelo simples fato de ser um amante do esquecimento.

 Lê as pessoas, as circunstâncias dos momentos e os momentos das pessoas, mas que pensa baixo, que esquece que o guarda-chuva protegia o livro, por ser descabido como todos regozijariam ou pelo simples fato de ser um amante do esquecimento

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O livro se rompe, as páginas são esquecidas, os personagens são apagados...o livro se rompe – é agora um livro sem linhas, sem páginas, sem capítulos, é completamente inesquecível e fútil, tão fútil quanto esperar embaixo da marquise, e como é fútil achar que vai se esconder da chuva na marquise! Como é fútil evitar a chuva! Como é fútil evitar o recomeço!

O menino decide ficar ali, sozinho em seu canto – se contenta com o recomeço, está resignado. Revira o bolso e encontra alguns reais, ou algumas dezenas, ou centenas de reais talvez, não se dá certeza – virou lama, como as linhas do livro. Não se importa com a perda, está resignado. Como sabe ler (e lê muito bem), leu que hoje é dia de chuva, e como dia de chuva é dia de recomeço, contenta-se em recomeçar com ela (a chuva), em partilhar o caos e a beleza do seu recomeço. Joga o livro molhado fora, livra-se dele por completo, esquece das linhas passadas, das linhas que teve que ler duas ou três vezes para entender. Livra-se do livro por completo, tanto do que lia antes da chuva quanto do que vivia antes da chuva. Esquece dos personagens ruins, até mesmo daquele que em outrora tentou ser narrador onisciente da vida. Livra-se dos personagens ruins, das falsas promessas dos personagens ruins – salva um alívio enquanto se livra. Livra-se dos clímaces ruins, dos parágrafos mal comunicados, dos capítulos inacabados, dos arcos acelerados, do tempo errado, de tudo.

E daqui do meu canto diante da chuva o observo, caro leitor, e faço com a minha vida o que o menino faz com a dele: recomeço. Assim faço e sem nenhum receio de dar errado, porque Deus é bom, e – pensando nos escritores – fez muitos dias de chuva para que possamos fazer proveito do recomeço.

Assim faço, caro leitor, porque dia de chuva é também dia de recomeço.

Assim faço, caro leitor, porque dia de chuva é também dia de recomeço

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