Haverá de ser feliz aquele que, numa noite de garoa, cedo demais ou tarde o bastante, fizer uma ligação ao amigo que virou colega, à madrinha que virou estranha, dizer a eles tudo o que for conveniente. Dizer tudo, entre versos compelidos e emocionados, parafraseados sobre o vinho ou a cerveja que ao momento será conveniente, servido ao banquete da festa dos anos, do aniversário do novo, do esquecimento do velho e da esperança no futuro.
Por ser ignorante será feliz, e por ser feliz quererá ser ignorante, tocará o resplendor da alta devoção ao inexistente, tocará – com o vinho ou a cerveja – o inadequado, rogará sobre as suas mãos os pecados momentâneos, mas somente estes, porque pouco depois – diferentemente dos outros pecados – poderão ser esquecidos, e assim será, à medida da sucumbência – como toda a vida velha – ao passado antiquado das vidas, mas somente ao passado antiquado, que não será levado em conta nem no futuro, quando o presente que aqui se passa já for passado o suficiente para – como a vida velha – ser esquecido, com vinho e cervejas ou sem. Será feliz e ignorante, rogará sobre as suas mãos os pecados que serão legalizados no momento – os pecados serão vários, mas que serão de certa forma ofuscados pelas falas e pelos discursos proferidos, já que – na vida futura – mais se valerá o que se fala do que realmente o que se pratica.
Telefonará desgovernado ou não, com jeito ou sem jeito, mas telefonará, e haverá de ser feliz quando o fizer. Perguntará como vão as crianças; como está a cidade, se o tio anda bem; se a mãe e a avó ainda andam brigadas; se o sobrinho já se formou; se a reforma continua dando prejuízos; se o primo foi internado mais uma vez; se passaram mais uma vez a virada na praia. Perguntará tantas coisas mais...será tão feliz quando assim fizer...
Depois, mais tarde, quando – entre ressoantes saudades inadequadas e inatingíveis – decidir beber mais uma vez, na esperança de acalentar a falta da família e tratar do saudoso prejuízo da saudade, ligará novamente. Desta vez mais alterado – talvez pela bebida, pela emoção do momento ou pelos dois motivos, não haverá de importar. A única coisa que haverá de importar é que o sinal de telefone continue estável, para que – calado e vadio – ouça mais uma vez a madrinha ou o amigo, para que reate de vez com a voz da verdade – ressuscite o passado e a vida velha, mas só a parte boa do passado e da vida velha, de maneira que só o passado bom ressoe sobre o presente. Os versos já não mais serão compelidos nem emocionados como em outrora, serão de pedido de socorro – socorram o pobre homem, escravo da saudade! Serão também de alívio, quando – entre frases desajeitadas e genuínas – puder pedir, insistir, implorar:
– Traga-me de volta, preciso tanto de vocês...aqui sou um só, um largado, mal-amado, desacreditado! – Sou um velho num corpo de um menino, um homem que pede licença aos outros e esquece de si, um destemperado! – Acreditava num tudo o que ouvia e que havia, e por ter ouvido e havido somente mentiras, não consigo mais acreditar sequer nas verdades.
– Sou um tolo que anda no meio de fantoches ou um fantoche que anda no meio de tolos, um escravo do ontem e servo do amanhã, um esquecido! – Por vezes sou carta fora do baralho e por vezes nem carta sou, um fuzileiro naval na idade média, um louva-deus em alto mar. – Traga-me de volta, preciso tanto do aconchego da avó... da rede balançando sobre a brisa no fim de tarde, do bolo de cenoura com limão nas manhãs, da luzinha amarela da cozinha nas noites, das toalhas bordadas, do café com açúcar, do armário de madeira...
Será feliz falando no telefone, implorando por um salvador da pátria interior, que consiga desempenhar ao menos uma missão: acabar com a saudade. Trazer de volta o aconchego da avó, ressuscitar a verdade da vida, pedir licença ao moralismo barato e sentar-se num banquete de nostalgias baratas, mas que no momento encontra-se em insolúvel distância vadia.
Será feliz e haverá de ser por toda a ligação, mesmo que pedindo socorro, porque saberá que no fim, o salvador da pátria interior é ele mesmo, e que se ele assim quiser (voltar para casa), assim será. Será feliz somente enquanto a ligação durar, entretanto, porque quando acabar a ligação, o vinho, as cervejas e o futuro, dará conta de que seu ego é maior que sua vontade de voltar – mas só quando acabar a ligação.
Quando já não for mais calado e vadio, quando a saudade genuína resplandecer e mais uma vez ressuscitar e quando o ano novo já for velho, talvez o homem telefone mais uma vez, querendo reatar com a vida – e assim deverá fazer, porquê todos nós devemos ter mais uma chance de reatar com a vida, e se há um dia para reatar com a vida, por quê não no dia da festa dos anos? Por que não no ano novo?
Assim deverá fazer, porquê mesmo que pecador – calado e vadio – e como pobre escravo da saudade, o homem que um dia foi feliz tentando reatar com a vida, há de ter a chance de mais uma vez ser detentor da felicidade.