Amargo Sol | #15

7 3 4
                                    

Ora, o que eu poderia esperar do sol senão que trouxesse-nos calor às tardes – e manhãs – de agosto? Peço ao menos que não traga frio, não é pedir muito...

O sol que aqui cerca as árvores, também me cerca. Esse sol frio – doce sol – chegou tão lento que – quando chegou – já nem se esperava mais que fizesse calor, não aquele calor que se faz quando diz-se, entre palavras compelidas e – estranhamente – aliviadas que:

– Tá num sol danado, né?

Doces sóis. Alimentam a vida das aves, trazem o canto destas e, quando há de chegar a hora de ir embora – contagiar outro pedaço – vão, carregam um certo desdém ainda. Dizem, em palavras compelidas e, agora – diferentemente de outrora – tão distantes, ir ali por um bocado de tempo e voltar. Mas não dizem que voltarão, não expressamente ao menos, e talvez nem tenham mesmo a vontade de dizer que voltarão – a julgar pelo desdém que carregam, e quanto desdém carregam os sóis!

Um desdém injustificado, ao menos para mim. Pois fiquem sabendo, sóis, que as luas sempre foram mais interessantes que os senhores. As luas carregam uma certa intimidade com os sozinhos, mas antes de ser sozinho já dava de notar a singularidade das luas. As luas trazem um certo ar de mistério, de precisar da noite e dos que – como elas – precisam da noite, de carregarem o mesmo mistério que carregam os seus filhos – os sozinhos, os filhos das luas, os netos da noite. A lua precisa da noite, sol. A beleza das luas também está nisso, vide que as luas – diferentemente dos sóis – precisam – como nós sozinhos – da noite. Precisam precisar, em suma. E pelo simples fato de precisar, já julgo serem as luas mais como nós – os sozinhos e os outros – do que propriamente como os senhores, sóis – amargos sóis. A dança das luas traz um certo desdém também, mas não como o dos senhores. E, por mais que, por vezes sejam debochadas e vão embora, as luas tem os panos passados a limpo por mim, por que sei que no final, quem mandam as luas embora mesmo são os senhores, sóis. Amargos sóis.

Aqui me cerca um sol. Dos vastos campos e tipos de sol, me cerca o mais tímido e mais frio, e faz pouco desdém, porque – diferente de outros sóis – este sol que aqui me rege, ou que me desgoverna, é mais tímido que os demais sóis, dos que vieram – ontem e anteontem – e provavelmente dos que virão, depois, à despedida da lua amanhã, quando vier um sol – amargo sol – e por sua vez, manda-la embora, como fazem os outros sóis.

Ainda que amargo, o nascimento dele haverá de ser lindo. Haverá de dançar com as borboletas às 9:00, de cantar com as aves às 10:00 e de tomar café da manhã de sábado com este que escreve, às 11:00, mas termina aí. Depois fica quente, depois fica agoniante, depois liga o ventilador, depois desliga o ventilador porque vai ventilar vento quente, depois toma um banho gelado de ducha, depois não dá de tomar banho gelado porque aqueceu-se a água da ducha, não dá. Não dá sol, não dá para compensar todo o dia – e as vezes se estendendo até a noite – esse calor insuportável e injustificável que traz, ainda em agosto. Depois ainda em setembro, e ainda em outubro, e ainda em novembro, ainda em dezembro. Janeiro, fevereiro...não dá!

O que não dá para acontecer de fato, entretanto, é o que aqui acontece nesse momento: em plena tarde de agosto, um sol que aqui cerca uma varanda linda de bairro de família, mas ausenta-se dos seus deveres de sol. Não gosto de sol e nem do calor que ele geralmente traz, mas não dá de uma situação como essa me ocorrer, não pela tarde – dia de sol é também dia de vida. Dia de sair de casa, porque, assim como eu, a maioria das pessoas não têm ou não estão dispostas a ligar o ar condicionado por todo o dia para fugir do abafo de dentro de casa – saem. Vem às praças, trazem os filhos, trazem a vida. Vão às praias, cachoeiras, piscinas – levam os filhos, tiram a vida da cidade quando levam os filhos embora para a praia.

Tenho à minha frente duas árvores – uma palmeira e alguma outra, bem mais bonita e bem mais verde até –, três cães – um de raça e coleira e dois de rua –, alguns brinquedos espalhados pelo chão da calçada de alguém que certamente está bastante pre...

Ops! Esta imagem não segue nossas diretrizes de conteúdo. Para continuar a publicação, tente removê-la ou carregar outra.

Tenho à minha frente duas árvores – uma palmeira e alguma outra, bem mais bonita e bem mais verde até –, três cães – um de raça e coleira e dois de rua –, alguns brinquedos espalhados pelo chão da calçada de alguém que certamente está bastante preocupado em fugir do sol frio que aqui nos cerca, ou que só está preocupado mesmo em desperdiçar água. Na varanda do sujeito, uma vida de criança abandonada – uma piscina de plástico transbordando água, com duas mangueiras – uma aberta e outra fechada – e embaixo da ducha da casa, também ligada, e transbordando – assim como a mangueira – a água fria dessa tarde fria de sol frio, que nem para esquentar a água serve – eis aqui a minha indignação.  Ora, sol, sua missão é fazer estas coisas – amargas – esquentar as caixas d'água, esquentar as casas, as calçadas das casas, os tetos, as paredes, o chão, tudo! Esquentar tudo, em suma. Não há mais nada, tem de vir aqui e apenas esquentar, e não venha fazer insinuações sobre iluminar, ou manter a temperatura amena – isto a lua também faz. Há uma vida de criança abandonada aqui, e mais triste do que a vida de uma criança abandonada é a vida dos brinquedos abandonados, por uma criança abandonada. Há uma vida abandonada na calçada à minha direita: abandonada pela criança que foi abandonada pelos pais, que abandonou a piscina de plástico que transborda água fria, abandonou os brinquedos e foi lá dentro, procurar os pais ou algum outro brinquedo, na piscina de concreto em água transbordada que virou a casa.

Agora há pouco, o casal voltou de seja lá para onde foram, notaram que o irmão mais velho (pobre coitado) foi jogar bola na rua e deixou o mais novo em casa: na piscina de plástico, na água fria, na tarde fria, no sol frio. A mãe, então, ficou furiosa –  foi, primeiro, atrás do mais novo, encontrou a casa toda bagunçada, cheio de brinquedos espalhados pelo chão e molhada com a água que transbordava pela ducha, notou que o cachorro fugiu, porque o mais velho – além de esquecer o irmão na água – esqueceu de fechar o portão. Foi, depois, atrás do cachorro, encontrou-o frente à esquina do terceiro ou quarto quarteirão, roendo o lixo com os dois cães de rua, ficou furiosa. Catou o cão nas patas e voltou para casa. No caminho de casa, encontrou o mais velho (pobre coitado). A mãe não fez nada ali na rua – ela, como o sol de hoje, é tímida. Catou os dois: o irresponsável do cão e o cachorro do irmão mais velho, chegou em casa e dentre as coisas que lhes disse, como que lhes ia ensinar a lição; que lhes ia mostrar o que vai lhes fazer; que nunca mais eles saem da rua; disse:

– Lucas, você é um cachorro mesmo! – Deixou seu irmão sozinho, aprontou uma bagunça desgraçada, acabou com a caixa d'água, e agora? – Eu não sei nem o que eu falo pra você, tem agido como um cachorro ultimamente, por Deus!

Lucas, sem entender nada, começou a latir. O cachorro, sem entender menos ainda, começou a argumentar com a mãe. A mãe começou a chorar como o mais novo, quando, de súbito tomaram um susto:

– Cachorro, você é um Lucas mesmo! Deixou sua mãe sozinha, aprontou uma bagunça desgraçada, acabou com a caixa d'água, e agora? – Eu não sei nem o que eu falo pra você, tem agido como um Lucas ultimamente, por Deus!

Você, caro leitor, há de convir: fosse o sol de hoje um sol quente, nada disso viria a acontecer. Ora, mas o que podemos esperar de um sol? Amargo sol.

 Ora, mas o que podemos esperar de um sol? Amargo sol

Ops! Esta imagem não segue nossas diretrizes de conteúdo. Para continuar a publicação, tente removê-la ou carregar outra.
𝙸𝚗𝚝𝚒𝚖𝚒𝚍𝚊𝚍𝚎Onde histórias criam vida. Descubra agora