- Vamos menino, anda logo e para de graça. - disse.
- Vem cacete. - completou.
Depois: algum palavrão ou outro de revirar não só os olhos, as mãos e as canelas, mas todo o resto. Tudo o que restou depois daquele palavrão.
Alguma certa robustez adulta, de algum receio adulto de atrasar algum certo compromisso do mundo dos adultos. Mundo frio, cruel... esse sim parece-me merecer um palavrão. Daqueles bem retumbantes, sonoros e ardentes, selvagens...
Restou um silêncio, provocado pelo medo e desconcerto que se instaurou nos olhos do menino. Aqueles olhos tão inocentes, tão despreocupados, despretenciosos... Para a doce mãe, tão atrasados...
- Vem, filho, vem.
Foi-se embora o silêncio e os dois foram caminhar, rumo ao destino mais doloroso à todos nós quando meninos, excepcionalmente e quase que inteiramente no auge dos nossos oito anos de idade: o salão de beleza.
Existe - no salão de beleza - algum certo exagero e uma mistura de todos os cheiros femininos exageradamente cheirosos e, sobretudo, exageradamente femininos, de menininha... Para nós - homens de oito anos de idade - do auge da nossa macheza e autoridade, é tudo muito de menininha no salão de beleza, e nós - homens de oito anos de idade - seríamos, portanto, homens de menor qualidade - ou maior estranheza(não tente entender) - no salão de beleza. Os borrifadores, que - como todos os cheiros femininos - são exageradamente femininos, rosinha, de menininha... As cadeiras, então! Por Deus, as cadeiras! Das duas uma: têm de ser de oncinha ou de zebrinha, menininha... Tudo muito "inha". Tudo com pouquíssima autoridade e macheza, excepcionalmente para nós - é claro - homens de oito anos de idade. O espelho e sua luzinha, as cabelereiras e as suas luvinhas... chapinhas... touquinhas...
Passou horas e horas naquela cadeirinha onde residem os homens de oito anos de idade, onde sobrevivem os esquecidos... Os pensamentos eram vários, primeiro: será que demora mais? Depois: vou pedir pra comer lanche na volta. Depois: será que vão ficar sabendo que eu vim aqui hoje?
Nossos pensamentos são vários, as inquietações são várias...
Lembro-me claramente da primeira vez em que fui à um salão de beleza, excepcionalmente das memórias olfativas. O vapor do secador na escova progressiva, onde reside a inquietação e ardência dos olhos de qualquer homem de oito anos de idade. Nos deixa escapar uma lágrima ou outra, uma gota de macheza ou outra se esvaindo pelo ar com o vapor da progressiva... Choro, menininha... O cheiro das chapinhas era amarronzado e quente, enferrujado, fosco. Os aventais tinham o mesmo perfume exagerado dos cremes capilares de cada cabelereira, e - por vezes - misturado e miticulosamente envolto por dentre um cheiro e outro, quando se trocavam os aventais entre as cabelereiras.
Lembro-me também dos efeitos sonoros: dos mais robustos até os mais compelidos. Primeiro, o barulho exaustivo do exaustor da porta de entrada. Depois: o clique enferrujado das cadeiras subindo e descendo. Depois: as rodinhas quebradas do carrinho de escovas. Rodinhas, carrinho, menininha...
Ao menino só restava a resignação, não havia nada a ser feito, era tempo de esperar. Tentou - vez ou outra - sentar-se na escadinha dos fundos, que era para ninguém ver que - o homem de oito anos de idade - estava ali, onde para nós - homens de oito anos - reside o mundo encantado, cheiroso, limpinho, mas acima de tudo, de menininha. Cadeirinhas, luvinhas, chapinhas, bonequinhas, rosinha, menininha...
Quando - de súbito - escuta um suspiro de esperança, de fundo, lá do lado do exaustor exaustivo.
- Vem cacete . - Vou ter que ir aí te buscar? - dizia.
- Não vai me atrasar pra missa, vem menino. - completou.
Receio adulto, compromisso adulto... Ele foi.
Atrasaram-se para a missa também.
Vocês devem se perguntar, é claro, por quê um homem de oito anos - do alto da sua autoridade e macheza - se atrasaria para dois compromissos adultos num só dia.
Não se perguntem nem se estranhem, senhoras, nós somos homens.
Nós não somos adultos.